A SORTISTA
Centro de Curitiba, entardecer de inverno, sob chuva.
Num prédio não tão novo da rua Treze de Maio, Letícia abre a porta de sua pequena sala comercial, onde pode ser lido "Madame Lê", numa placa amarelada. O ranger das dobradiças a lembra: é preciso chamar alguém para a manutenção. Mas não há como; não enquanto seu orçamento mensal for uma equação tão difícil de resolver. E ela ainda não consegue prever quando isso mudará. O jeito é ignorar, por ora, o desnível do batente; e aplicar algum óleo ou desengripante para diminuir o ruído. Ou aceitar essa trilha sonora da decadência, até conseguir dar a volta por cima.
Porta fechada, a mulher deixa a bolsa numa estante atrás da escrivaninha, junto com alguns boletos recolhidos em sua caixa de correspondências. Respira fundo e consulta sua agenda: só dois horários preenchidos. Lucinda K., às 17h; e Augusto H., às 18h30. Triste, mas não surpreendente. Cartomancia, vidência, e outros métodos de investigar o destino de alguém, não são mais o grande "hit" em 2023. Na verdade, nem nunca o foram para ela.
A atividade, chamada por alguns conterrâneos de "sortista", costumava ser uma diversão em sua adolescência. Sempre tivera facilidade com esses assuntos, mesmo sem entender a razão. Houve uma fase, na tenra infância, em que fora cobrada por ficar muito tempo conversando com amigos imaginários, os quais em nada lhe pareciam irreais, pois lembra até hoje de suas caras, vozes e cheiros. Isso tinha sido no mesmo período em que conseguia achar qualquer coisa que seus familiares perdessem. Sorte, todos diziam; mas ela podia jurar que a imagem da coisa e do lugar apareciam em sua mente, desde que fechasse os olhos um pouco.
Um dia, passou a se perguntar se era mesmo pura sorte. Por coincidência, tudo isto parou, na mesma época: pessoas de “faz-de-conta”, imagens de objetos perdidos, alertas e outra bizarrices infantis. Pena ter sido antes de seus pais serem enganados pelos sócios, falindo de forma irremediável. Crescera, então, perguntando a si mesma se, caso ainda enxergasse “aquelas coisas”, teria conseguido ajudá-los.
Mas jamais deixara de se entreter com esse universo. Só o remetera para uma dimensão menos séria. Na fase adulta, a brincadeira tornara-se "bico" para "fazer um extra", como um jogo teatral para festas e encontros divertidos. Estudou de mapa astral a mentalismo, aprofundando-se e levando bem a sério cada atendimento feito. Afinal, eram clientes pagando em busca de algo.
Ela sempre se perguntara - e segue com a indagação bem viva - qual o tamanho de sua habilidade, para garantir ofertar esse "entretenimento" de forma pura, longe do perigoso território do charlatanismo e da manipulação de emoções. Mas jamais pretendera construir, sob ângulo algum, sua vida material sobre isto.
As mudanças na economia mundial, a tecnologia galopante e dois anos de pandemia fizeram-na lembrar que pretender é um verbo volátil. Às vezes, quase poeira ao vento. De distrações diletantes, a vidência e a cartomancia passaram a ser uma incontornável busca por complemento da renda básica, no contraturno da jornada de recepcionista em centro comercial, sua atual profissão "provisória-permanente". Tudo para conseguir equilibrar-se na luta contra seus fantasmas mensais: as parcelas de composição da dívida que conquistou, após o naufrágio de sua sonhada cafeteria estilosa, abalroada pela frota de franquias "take away" que avançaram sobre seu mar, quando ainda tentava achar um porto seguro, após o tsunami do COVID-19.
Herdar a sala comercial de seu tio Lourenço foi um respiro inesperado; uma boia de esperança para achar alguma saída, antes da bancarrota afogá-la por completo. Um ponto de partida sem a montanha-russa dos aluguéis. Assim, mesmo com baixo movimento, a atividade já começa a ajudar em algumas contas. Não muitas, mas o suficiente para uma sobrevida na arte de equilibrista de finanças. Somada ao emprego do centro comercial, claro.
Mas a partir de agora, e ao menos até o final dos atendimentos, é hora de dar pausa nas sessões de autopiedade. Pois as de clarividência precisam ocupar seu espaço. É hora de arrumar a mesa com os equipamentos que a ajudam a enxergar os mundos buscados por seus clientes, sejam eles possíveis ou não. Cartas, tabuleiros, alguns apetrechos simbólicos, livros, mapas esotéricos. Até mesmo louças; para os que desejarem analisar a borra do café ou as folhas de chá; ou para apenas servir alguma bebida quente aos mais ansiosos.
Depois, aproveita a presença de um extravagante e antiquado espelho, postado em parede da sala, próximo à porta do banheiro, para ver se está apresentável. Ajusta o cabelo escuro e seu traje, na intenção de parecer mais velha do que de fato é. Por alguma razão, as pessoas parecem esperar uma relação mais confiável entre esoterismo e maturidade, mesmo quando consideram o primeiro mera fantasia. Enquanto se olha e se ajeita, não consegue deixar de estranhar, pela enésima vez, o gosto de seu tio: um espelho tão pomposo numa sala com móveis tão despojados. Deve ter custado caro. Nunca lhe parecera haver tanta vaidade no tio Lourenço. Ou tanta falta de senso estético. Afinal, era um fotógrafo.
Talvez, quando voltar a ter dinheiro sobrando, pense numa reforma da sala. E avalie se faz os móveis combinarem com aquela peça; ou se a vende num antiquário e redecora a parede com algo mais leve. Por ora, vai se valendo dela para melhorar sua autoconfiança, enquanto se transforma em Madame Lê.
16h50.
Uma mensagem entra em seu “whatsapp” comercial. É o tal Augusto, pedindo remarcação de sua consulta. Ela respira fundo, consulta a agenda e propõe o novo horário para dali a dois dias, também após as 18h. Um "ok" lacônico, por parte do cliente, conclui o assunto. Mas se ela imaginasse restar só um atendimento para hoje, teria tentado renegociar com a outra cliente, também. Enfim, agora é tarde para isso.
17h.
Uma mulher de cabelos esbranquiçados aparece em sua porta. Olha para dentro da sala com ar interrogativo, um pouco de timidez e, também, medo.
— Com licença? Estou procurando a Madame Lê.
— Pois não? É a Senhora Lucinda?
O rosto da visitante empalidece um pouco mais. Sua mão direita aperta o topo do casaquinho, na exata parte que separa a última casa de botões da ala superior da vestimenta, aquela que se costuma encaixar sob a gola da blusa de baixo, semi encoberta pela vestimenta. Uma voz encabulada e trêmula pode ser ouvida:
— Sim... sou eu...
— Por favor, entre e sente-se. Como vai?
Lucinda adentra a sala sem responder, encosta a porta e encolhe-se numa cadeira à frente da mesa. Não faz qualquer movimento para olhar nos olhos da anfitriã.
Letícia observa a atitude da mulher. Repara nas mãos fechadas: uma, segurando firme a alça da bolsa; e a outra, ainda agarrada ao casaco, como se quisesse cumprir o papel do botão e de sua casa, embora inexistentes no modelo. Os delicados óculos repousam sobre o nariz, mas as pupilas olham acima deles e em frenéticos movimentos para os lados, sobretudo em direção à entrada e ao antigo espelho. Os joelhos da retraída senhora fazem ligeiros tremores, de tempos em tempos.
— Deseja que eu tranque a porta? — Indaga, cautelosa, a dona do negócio.
Um olhar misto de surpresa, alívio e temor, é vislumbrado na face de Dona Lucinda, no breve instante em que, pela primeira vez, encara a mulher que a atende.
— E-eu gostaria, sim, por favor.
A sortista se ergue, caminha até a entrada, aguenta o ranger das dobradiças, e passa as duas trancas antigas na porta. O "clac" da primeira parece causar arrepios na visitante. Mas o segundo "clac", ao contrário, coincide com o início de um relaxar de ombros da tímida senhora. Este ato a faz descuidar, por breve instante, do gesto de segurar o casaco mais fechado do que o previsto para aquela peça. Tempo suficiente para a inquietante marca longa e vermelha, na base de seu pescoço, ficar visível. Mas não o bastante para entender sua origem.
Aquela imagem, junto com a fala corporal da cliente, intrigam a mulher mais jovem. Tanto que ela arrisca abordar uma primeira hipótese surgida à mente, ainda que o usual e prudente, em seu negócio, aponte para esperar mais, antes de dizer qualquer coisa.
— Pronto, Dona Lucinda. Posso lhe assegurar que, neste consultório, ninguém conseguirá entrar, muito menos lhe prejudicar outra vez. Não enquanto estiver aqui.
As cores faciais da frágil senhora mudam. Do pálido para o gelo; e deste, para um vermelho inflamado.
— P-por quê diz isso? Como pode saber alguma coisa?
Pela primeira vez, o tronco da visitante fica ereto, mostrando tratar-se de uma mulher bem mais alta do que aparentou na chegada. O rosto, embora ainda acene medo em cada poro, recobra alguma disposição para o confronto. Os olhos fervem. Nada disso passa despercebido pela mentalista.
— Estou errada? - Fala a Madame Lê, enquanto fita as órbitas da senhora com doçura e, também, firmeza.
A recém-desperta altivez de Lucinda se esvai, tão rápido quanto apareceu. Os ombros arqueiam, uma vez mais. O leão, revelado em seu brilho, outra vez se apaga. Alguma água verte pela face, discreta e lenta.
— E-eu... Não consigo dizer com certeza. Às vezes, acho que enlouqueci. E, talvez, preferisse assim.
A idosa fita o nada. Talvez enxergue outro lugar, outro tempo. Talvez outras pessoas. E, por certo, muitas sombras, muitos fantasmas. Seu nada é cheio de tudo. Letícia observa, enquanto aguarda Lucinda prosseguir. Mas o que ocorre, em seguida, a faz perceber ser necessário ir muito além de habilidade, criatividade ou iniciativa.
— Preciso saber se estou louca, ou se alguém me persegue mesmo. Acho que me querem morta! — Fala, em prantos, a cliente.
Letícia gela com o rumo da conversa. Embora já não estivesse esperando as perguntas usuais - romances, fortunas, viagens, rivais -, viver uma cena como esta é algo bem diferente. Um pouco do medo de Lucinda parece ter pulado para seu colo, agora, aninhando-se e a arranhando com suas pequenas garras. Percebe não ter, de fato, se preparado para algo tão pontiagudo.
— Calma, Dona Lucinda. Quer um chá?
— Aceito, sim, minha filha...
Enquanto prepara a bebida providencial Madame Lê busca entender melhor a história.
— Senhora, não seria melhor outro tipo de profissional para discutir isso? Policiais, detetives, algo assim. Afinal, podemos estar diante de um caso de segurança...
— Experimente chegar à minha idade e ir à Polícia dizer que alguém pode estar te perseguindo, mas ser incapaz de citar "nomes, dados e fatos".
"Não é apenas para alguém na sua idade", pensa a vidente.
- Sei o que está pensando, moça! Em qualquer idade, a polícia precisa de algum ponto de partida, né?
Letícia cora. Mesmo em silêncio, seu pensamento sobre o assunto foi captado. A velha é esperta, rápida e capaz de reagir com altivez, quando se sente na mira. Lucinda continua:
- Mas se você fizer essa fala, ao sair da delegacia eles pensarão: "que história louca". No meu caso, o pensamento deles será outro, e talvez comece antes de eu sair: "que velha louca"!
A mentalista observa, outra vez, as mudanças de cor nos olhos e na face da cliente durante o discurso, agora rumando para o semi inflamado. É quando nota tremores nos joelhos e nas mãos, em dissonância à potência daquela fala. Sua hipótese: a altivez é o escudo para os momentos de maior pavor. Só não identifica ainda qual é o ponto da história a acionar este gatilho. Afinal, ainda está em sua sala; e nenhum elemento físico diferente foi introduzido. Elemento ou pessoa. Nem mesmo uma grande narrativa ocorreu até agora, para evocar memórias tão vívidas. Decide, então, puxar algum ângulo de objetividade para direcionar a conversa:
— Entendi, e sinto muito. Somos todos vistos a partir de rótulos, mesmo. E, às vezes, isso só aparece quando precisamos de ajuda. Mas por que concluiu que eu conseguiria ajudar? Ainda me parece um caso de segurança.
A cliente encolhe outra vez seu corpo. As chamas se dissipam da face e dos olhos. E, pela primeira vez, ela encara Letícia de forma longa. Mas a postura nada tem a ver com confronto ou defesa. É uma súplica.
— Porque acredito haver espíritos agindo. E não tenho mais forças para aguentar isso sozinha!
"Madame Lê" fica ainda mais intrigada com o rumo da conversa. E, claro, sente um lampejo de comoção e compaixão pela misteriosa - e cada vez mais trágica - anciã.
— Dona Lucinda, veja, vou tentar ajudá-la. Não sei direito como. Mas vou tentar.
— Obrigada, senhorita. Vai conseguir fazer alguma coisa, sim. Esta sala tem a energia certa. Sempre teve...
"Mas eu nunca a atendi", pensa a vidente. Em seguida, abre seu estojo de cartas e avalia suas opções. Decide usar o clássico tarot. Acredita que, por intermédio dele, conseguirá falar com a propriedade adequada, impressionando mais a cliente. Isso, talvez, facilite à idosa organizar suas ideias e, por fim, chegar a um ponto lógico. A jovem tem a esperança de, a partir daí, dar a melhor orientação para a cliente. Por ora, acredita que os bons desfechos seriam: obter um encaminhamento para o serviço social, ou para uma clínica. Quem sabe, até para a polícia; mas não acredita muito na hipótese da receptividade deles para a narrativa, ainda mais depois do insólito comentário sobre a "energia" da sala.
De qualquer forma, sabe que precisa ajudar essa senhora. Não dá pra pensar, desta vez, em apenas ganhar seu dinheirinho para os boletos.
— Dona Lucinda, vamos usar o tarot para tentar entender melhor o que se passa. Pode ser?
— Confio na sua escolha. — Responde a anciã.
Letícia esperava um simples "pode" como resposta. A fala sobre confiança deixa-a um tanto quanto encabulada. Mas acredita ter disfarçado bem. Então, passa a orientação de praxe:
— Pense na principal pergunta que há em seu coração. Aquela cujas respostas são essenciais para a senhora.
As cartas são embaralhadas. A cartomante convida a cliente a cortar o monte. Ela o faz. Quando Letícia junta os dois segmentos para manuseio e extração, algo acontece. Algo vivenciado poucas vezes, e nunca de forma tão intensa: zumbidos tomam conta de seus ouvidos; ou da mente, não sabe ao certo.
Por fim, a movimentação do tarot se conclui; e três integrantes são retirados, na seguinte ordem: o Sete de Espadas; a Rainha de Espadas; a Torre. Madame Lê olha para a disposição dos arcanos sobre a mesa, com os dois menores antecedendo o maior. Tenta correlacionar com a narrativa pouco clara de Lucinda. Mesmo um pouco preocupada com a reação da cliente, arrisca ser mais assertiva.
— Sete de Espadas: Essa carta está relacionada a uma verdade dolorosa já existente. Pode se depreender que a senhora foi ou tem sido enganada, golpeada, prejudicada por alguém hábil em esconder isso. E reforçada pelo fato da senhora se negar a aceitar, recusar-se a enxergar.
— Bebeto...? — Murmura a anciã.
A jovem fica curiosa com o resmungo, mas não faz perguntas. Não ainda. Prefere prosseguir na leitura dos arcanos.
— Rainha de Espadas. Esta geralmente é um grande perigo. Representa um ataque no presente. Ela é associada à expectativa de que alguém vá te prejudicar. Ou, no caso, já o esteja fazendo...
— ...ou já o fez. — Constata Lucinda, desamparada.
A jovem, lembrando da fala sobre espíritos e desejo de morte esboçada, há pouco, pela cliente, fica ainda mais curiosa. Mas não no sentido estimulante.
— Por fim, a Torre. — Observa a vidente.
— Ui! Essa imagem parece destruição! — Exclama a cliente, em tom agudo.
Letícia fica um pouco inquieta com a reação da idosa, mas busca disfarçar para concluir sua leitura.
— Talvez. Este arcano pode representar um desastre inesperado, entre outras coisas. É como se dissesse: "Cuide-se. O pior pode vir, se você não tomar consciência."
— "Se eu não tomar consciência". — Retruca a visitante, abatida e olhando para o nada.
A mentalista percebe mudanças na linguagem corporal de Lucinda. Está encolhida, mas não parece mais tensa. Os sinais de melancolia aumentaram muito, mas não percebe nela mais indícios de medo. E toda a gestualidade de armadura da mulher altiva sumiu por completo. Isto soa-lhe intrigante. As cartas não trouxeram notícias boas. Por que, então, a mulher parece-lhe mais desarmada agora?
— A senhora está bem?
Com lágrimas sobre o rosto, formando poças nas diminutas lentes dos óculos, Lucinda responde, branda e distante.
— Não. Bem, não estou. Conformada, sim. Demorei muito pra querer aceitar. Bebeto... por quê? Que fraqueza... E como eu fui cega.
— Dona Lucinda...?
A senhora enxuga suas lágrimas, volta-se para Letícia e faz um sorriso desajeitado.
— Eu o criei, sabe? Cuidei dele.
— Seu sobrinho, né? - A "adivinhação" de Letícia é pronunciada, mesmo sem causar surpresa à idosa.
— Sim. Filho de meu irmão. Passou a morar em minha casa na adolescência, quando o Lúcio morreu. Achei que, comigo, não seguiria os passos do pai. Mas agora entendo: não consegui. A cobiça e a vaidade foram mais fortes. Tolo! Iria herdar tudo de qualquer forma. Bastaria ter esperado.
— Herdar?
— Terras. Uma vinícola. Um comércio. Um apartamento. Não tenho outros descendentes.
Os zumbidos voltam à mente da jovem. Intensos, desnorteadores. Ela sente náuseas. Pede licença por um instante e vai procurar a pia; talvez até o vaso. Ao passar pela frente do espelho, antes de chegar ao banheiro, olha de relance e sente como se a imagem refletida estivesse incorreta. Mas o imperioso receio de vomitar, na frente da idosa, faz a clarividente deixar essa impressão de lado e prosseguir em sua urgência estomacal.
Dentro do WC, uma única e pífia golfada faz a ânsia passar. Ela refresca seu rosto com água da pia e saca do enxaguante bucal na prateleira do armarinho, enquanto volta a falar com Lucinda, antes mesmo de voltar.
— A senhora havia falado em alguém a estar seguindo...
— Engano de uma velha tola. Ele sempre esteve ali pertinho. Não precisava me seguir pra me observar. Pra tramar. Só precisaria haver alguém na hora de sujar as mãos...
— Alguém para sujar as mãos? Eu não sei se entendo...
A cartomante, no fundo, está com receio de entender. Mas seus zumbidos não lhe permitem dúvidas: está sentindo algo muito sombrio no ar. A fala de Lucinda não para:
— E acho que ele conseguiu dois para isto. Um pra lidar comigo. Outro, para os papéis.
— Papéis?
Dona Lucinda prossegue como se não percebesse as dúvidas de Letícia.
— Só pode ter sido meu próprio advogado. No final, Lourenço acertou, quando me fez guardar versões autênticas de tudo em lugares diferentes. Assim, há uma chance de haver justiça.
Intrigada com as frases, a clarividente presta mais atenção enquanto não consegue voltar para a sala. E assim, ouve um tom lacrimejante na fala seguinte da visitante.
— Tarde demais pra mim. Mas não pro Bebeto...
Letícia não gosta dessa última frase. Mas ainda não sabe como fazer para expressar isto. E antes que o saiba, ouve o barulho das cartas sendo agrupadas e divididas de novo.
— Madame Lê, muito obrigada pela ajuda para compreender... para aceitar... o que aconteceu.
A jovem continua não gostando da construção das frases de Lucinda. Há um tom de despedida nelas.
— Não há o que agradecer. Eu nada fiz, além de uma interpretação básica de cartas. Nem cheguei a me aprofundar.
A anciã fala, para si e para a mentalista, enquanto olha na direção da parede do espelho, com estranho sorriso.
— Acho que eu só precisava de alguém para me ouvir sem preconceito. E sabia que conseguiria isto nesta sala. Sempre consegui. Ela tem a energia certa.
De novo, aquela menção à "energia" da sala, num tom meio sem sentido. Letícia acelera a passada de toalha no rosto e o retoque do batom. Precisa perguntar algumas coisas para Dona Lucinda. E sua intuição lhe diz que pode estar perdendo a chance.
— Ah! E está enganada, mocinha! Você se aprofundou muito, sim. Já é uma grande médium. Só não percebeu ainda. — Comenta, por fim, a cliente, antes de ficar em completo silêncio.
— Pronto, Dona Lucinda. Agora, vamos falar mais um pouco. — Arremata a vidente, enquanto sai do banheiro.
Mas, ao colocar os pés na sala, toma um susto imenso: não há mais ninguém ali. A cadeira está mexida; a xícara, usada e ainda quente. A porta está fechada, mas destrancada. Ela vai até o corredor: não há ninguém. Nem barulho de passos nas escadas, motor de elevador ou ruídos de pessoas.
— Nossa! O que aconteceu? Por que saiu assim tão rápido? E por que a porta não rangeu dessa vez? Sem barulho... que "ninja"! — Ironiza, buscando distensionar.
Mas não consegue. Está confusa e lutando para não concluir absurdos. Ao mesmo tempo, uma voz interna lhe diz para acreditar, desta vez, nas mais insólitas explicações. Pois só nelas haverá lógica suficiente.
Decide fazer um chá e sentar-se. Quer se acalmar. É quando olha para a mesa e percebe a razão daquele ruído anterior: três cartas novas foram retiradas do monte recomposto. E estão dispostas, próximas à sua cadeira, na seguinte ordem: A Lua; o Cavaleiro de Espadas e o Ás de Copas.
Letícia não precisa ler seu livro. Não por ora. Entende e lembra o mínimo suficiente, para perceber o recado principal. A Lua indica que podem estar acontecendo coisas inimagináveis; e é hora de confiar mais na intuição, para não se iludir e cair em armadilhas. O Cavaleiro de Espadas, um acontecimento imprevisto, capaz de mudar tudo; e sendo do naipe "espadas", pode haver desdobramentos dolorosos. Por fim, um Ás de Copas a conforta: ele costuma indicar que haverá proteção divina.
A jovem, que só voltara às atividades esotéricas por precisar melhorar a renda, está mergulhada, agora, num mar de intranquilidades. E flagra-se, mais de uma vez, tentando se iludir com seu lado mais racional, repetindo à exaustão: "nada disso é o que parece ser". Porém, sua intuição já informou à alma o exato contrário.
Numa última tentativa de adiar esses pensamentos para, talvez, arquivá-los depois em algum canto letárgico da mente, decide fechar o consultório e ligar para Wallace, seu primo mais chegado. O filho do tio Lourenço fora seu melhor amigo e primeiro interesse hormonal na adolescência. Até hoje, se ajudam e se apoiam muito. É a pessoa certa para lhe pagar uma rodada de qualquer coisa, com ou sem álcool.
Contato feito, encontro combinado. Vinte minutos depois, ambos estão no café do Cine Passeio. Fazem seus pedidos e escolhem uma mesa. Cafés e salgados servidos, a conversa se inicia, entre goles e mastigadas.
— Lelezinha! Encerrou cedo hoje, pelo visto...
— Nem me fale, Wally. Hoje foi curto e bizarro! — Desabafa Letícia, enquanto respira fundo e solta o ar, ruidosa.
— Talvez seja o dia das bizarrices, então, e não nos avisaram...
— Como assim? — Reage Letícia, intrigada com a fala e temerosa com a possível resposta.
Wallace abre sua mochila e retira, de trás do notebook, uma pasta de arquivo velha e meio amassada.
— Sabe que eu estou, aos poucos, organizando e limpando as tralhas do papai, né? Em especial, as que estavam na sua sala de atendimento.
— Sim. Aliás, obrigado por ter removido tudo para o seu escritório antes de selecionar. Eu não teria conseguido ajeitar minhas coisas para o atendimento tão rápido, se não fosse você...
— Imagina, priminha! Sabe como todos gostamos de você e queremos vê-la superando essa fase...
Sorrisos cheios de afeto são trocados ente seus olhos e seus dentes. Wallace continua:
— Enfim, uma das pastas caiu da gaveta, quando a abri. Mas poderia jurar ser impossível uma queda assim, tão fácil. São muitos os dossiês e eles se comprimem. É difícil até de arrancar o que você quer... Imagina sair sozinho.
O zumbido volta à mente de Letícia. Sua vontade é ignorar. Mas não dá.
— Wallace... esses arquivos do tio... eram dos clientes?
— Há os registros contábeis, também. Assim como outros documentos legais. Mas a maior parte das pastas refere-se a clientes, sim. Do estúdio fotográfico e dos contratos de investigação.
— Investigação?
— É. Ele tinha licença como detetive também, além de fotógrafo. Não eram tantos clientes como os que o procuravam para as fotos, mas pagavam bem. E ele gostava dessa atividade.
Letícia se esforça para prestar atenção em cada palavra. Mas está suando frio, enquanto o zumbido segue, deixando-a atordoada.
— E essa pasta que caiu refere-se aos negócios como detetive, certo? — Ela pergunta, começando a sentir tonteira.
— Verdade... Uau! Você é mesmo uma boa vidente!
Ela responde com um sorriso amarelo, enquanto sente o salão todo do café balançar.
— Vamos ver se você adivinha mais alguma coisa? Quer tentar? — Pergunta Wallace, ainda sem perceber o sofrimento interno da querida prima.
A jovem toma um gole de café, na esperança de se sentir melhor, e responde:
— Claro... Hã... Esse dossiê é da seção de casos não resolvidos?
O primo se espanta de admiração e, ao mesmo tempo, começa a achar tudo estranho.
— Meu Deus! Acertou de novo! Como isso é possível? Espera... Você disse que o dia foi bizarro...
— Querido, por favor! Vamos focar nesta pasta primeiro, ok? — Interrompe, bastante ansiosa e abrupta.
— Está bem... o que deseja fazer agora?
— Qual é o caso na pasta?
A pergunta sai em voz quase estridente. É quando Wallace percebe que a prima não está passando muito bem, e faz menção de abraçá-la. Mas é detido por um gesto brusco de Letícia, que em seguida aponta para a pasta. Resignado, ele abre o material e volta a falar.
— Trata-se de uma empresária que havia pedido algumas investigações a ele. Não li tudo, mas diz aqui que ela sumiu. E tá evidente: meu pai morreu sem descobrir o que aconteceu com ela...
— E sem concluir a investigação que a fez procurá-lo também... certo?
— A de antes do sumiço? Sim... Letícia! Você agora está me assustando!
A cabeça da moça oscila. Ela fecha os olhos e esfrega as mãos na testa. E então relembra o que estranhara quando passara em frente ao espelho, na sala de atendimento: não havia reflexo algum da idosa nele, embora desse para ver todo o mobiliário.
— Este é o meu novo mundo... O das pessoas assustadas...
— Imagino que você vai saber me dizer o nome da cliente também...
— Lucinda. Certo?
Boquiaberto, Wallace balança a cabeça, concordante.
O silêncio ocupa a mesa, agora. Os dois decidem tomar alguns goles de café, para ver se reencontram palavras para pronunciar.
Na mente da moça, contudo, há uma chuva sonora. Muito do que ouvira há pouco, naquela sala, começa a fazer sentido. E isso não a pacifica, em absoluto. Mas ao menos lhe dá um sentido. "Acredito haver espíritos agindo"; "esta sala tem a energia certa"; "se eu não tomar consciência"; "demorei muito pra aceitar". Cada fala dizia o que de fato ocorria ali. E mais: dizia sobre Letícia também. "Você se aprofundou muito, sim; é uma excelente médium, só não percebeu ainda".
Eis porque a porta sequer rangera no final. Lucinda nem precisara abri-la. A aparição; as falas; a escolha por Letícia, na mesma sala do tio; e a mensagem das cartas.
Ela não sabe dizer quando ocorreu. Mas sabe que é fato: no mínimo desde hoje, a mentalista, vidente, sortista, cartomante não é mais nada disso e é tudo isso ao mesmo tempo. Tudo isso e algo mais.
Letícia enxerga outros mundos de fato. E esses, por sua vez, agora podem enxergá-la também. Às vezes, até se comunicam. O que vai fazer com isso? Ainda não sabe direito.
Mas agora consegue responder aquela pergunta que a persegue desde a adolescência: faça o que fizer, doravante, bom ou ruim, não será charlatanismo.
— Wallace... aí diz o nome da empresa administrada por ela, certo?
— Diz, sim. É a Vinícola Kniss, além de uma distribuidora de bebidas que tinha o nome parecido: Kniss Comércio de Bebidas.
— Você disse "tinha"...?
— É... mas a informação não está atualizada. Eu só disse isso por conta do que vi hoje, a caminho do trabalho.
O zumbido importuna Letícia de novo. Porém, parece a atordoar menos, desta vez. Ela olha para seu primo, interrogativa. Wally prossegue:
— Sempre passo por uma das lojas deles, quando venho para estes lados. E hoje, percebi que o letreiro foi modificado. Deve ser coisa bem recente. Até achei o novo nome bem sonoro. Clichê, também. Mas inteligente, como marca, para não ser esquecida: Bebeto Bebidas.
Nada mais precisa ser dito. Ela entende tudo. A decisão pela mudança de nome do comércio pode ter sido o gatilho para Dona Lucinda procurá-la. Se pesquisar a fundo, talvez conclua que o contato de agendamento coincide até com alguma celebração da nova marca das lojas. A certeza da derrota para seu algoz.
Mas nem imagina precisar de mais alguma evidência. Deseja, mesmo, é saber como irá usar suas habilidades. E como denunciará sua descoberta, sem ser tratada como louca. E sem colocar sua vida em risco.
Letícia não sabe quase nada sobre seu próximo passo. Exceto duas coisas. A primeira: não pretende rumar para a omissão. E a segunda: não quer morrer tão jovem.
— Wallace...?
O tom da voz lembra a miúda priminha adolescente, em seus dias de desamparo. Sua empatia responde, automática:
— O que foi, Lelezinha?
— Pode, por favor, me fazer companhia esta noite?
Os planos de Wallace eram outros. Envolviam esportes na TV, bebidas, um grupo misto de colegas do trabalho, quem sabe até alguma diversão mais picante depois. Mas sua hesitação dura poucos segundos. Tempo suficiente para uma mensagem no grupo dos colegas, informando impossibilidade de comparecer. Então, ele a abraça e diz.
— Vai contar sempre comigo, priminha.
Letícia suspira, entre o medo e o fascínio do que a aguarda. E respira, diante da certeza de um conforto imediato, com mais algumas horas de vida segura e afetuosa, no amparo de Wallace. Ela fecha os olhos e encosta a cabeça no ombro do primo, desejando que a noite se alongue. Amanhã, com mais racionalidade, escolherá as partes certas para contar ao primo; e as partes a esconder.
Não quer pensar em mais nada agora. Só quer sentir seu coração batendo, mergulhada na ilusão de um mundo seguro. Pelo menos, até o nascer do sol.
Um dia depois, 17h
Já paramentada para iniciar os três atendimentos previstos para aquele entardecer, Madame Lê instala alguns equipamentos em sua sala, emprestados por seu primo. Decide registrar qualquer coisa, misteriosa ou não, ocorrida ali dentro. É sua maneira de dizer pra si mesma que está lidando com seus medos.
Mas nada incomum ocorre nesta "jornada esotérica". As habilidades de mentalista, associadas a alguns conselhos, foram suficientes para os clientes do dia.
Dois dias depois, 17h30
Letícia chega em sua sala, exausta. Foi um dia agitado no outro trabalho. E seu almoço teve o horário bastante reduzido, pois precisou concluir algumas pesquisas na Biblioteca Pública, iniciadas já no almoço do dia anterior. Depois do caso "Dona Lucinda", acha importante se informar mais. Sobre a história de seu sumiço; mas também sobre aparições e outros fenômenos. Não consegue evitar: é assim em relação a tudo aquilo que a incomoda.
18h30
Alguém bate à porta. A moça se levanta e vai atender.
— Com licença...? Você é a Madame Lê, certo?
— Boa noite. Senhor Augusto...?
Um sorriso dissimulado e um discreto balançar com a cabeça são as respostas obtidas do homem. Um zumbido e um princípio de mal-estar são as maneiras do corpo de Letícia processar as respostas. Embora isto hoje não a surpreenda como da primeira vez, algo a faz sentir mais medo.
— Como posso ajudá-lo?
— Ué! Não deveria ser capaz de prever, só de olhar pra mim? — Debocha o homem.
— Senhor, posso compreender ceticismo quanto ao meu trabalho. Mas, se não acredita, por que está aqui? Meu serviço não é gratuito, nem promete eficácia. — Rebate Madame Lê, num misto de serenidade e firmeza.
Augusto faz mais um sorriso irônico. Depois recua e muda sua expressão, demonstrando alguma reverência, e também algum respeito.
— Peço desculpas. Foi um comentário infeliz, mesmo. Reconheço. Podemos começar de novo?
Ainda mergulhada em zumbidos e náuseas, a jovem finge não se importar com a falta ou a presença de amabilidade no cliente.
— Não é preciso "começar de novo". Basta irmos para o que interessa. O senhor me procurou e, por certo, deseja algum serviço....
Neste instante, Letícia percebe como os olhos do cliente são irrequietos, evitando fitá-la, porém fixando-se no mobiliário. Então, ela muda o final da sua fala:
— ... ou alguma coisa. Um objeto, talvez?
O visitante empalidece e, depois, enrubesce. Tal qual criança flagrada em ato proibido.
.
— Eu... hã... vejo que estava muito equivocado. A senhorita entende, mesmo, do riscado.
— Não estou muito habituada a esta expressão. Mas soa como um elogio.
— E é, acredite.
O zumbido fica agudo. Como se o seu risco tivesse aumentado. Ela tenta manter-se impassível.
— Deseja a minha ajuda para localizar um objeto?
— Sim. Algo assim.
A voz, o modo de movimentar os lábios, e as contrações das duas mãos, indicam a Letícia que o homem está mentindo, ou ocultando parte da verdade. Ela se pergunta: deve continuar fingindo que não percebe? Ou deve fazê-lo se expor? Não tem certeza da melhor opção. É quando surge uma voz em sua cabeça. Um sussurro incompleto, talvez. Mas com uma dica bem consistente.
— E o objeto procurado já esteve aqui nesta sala... É isto?
O homem fica surpreso. Seus olhos fixam em Letícia pela primeira vez.
— Esteve?
— Ao menos, foi o que eu senti.
A fala da mulher soa bem clichê. Augusto fica propenso a duvidar. Mas, talvez pelas observações anteriores, prefere refutar julgamentos apressados, mantendo muita cautela. Pela primeira vez, é possível identificar insegurança legítima em seus gestos. Ponto para Madame Lê.
Só que não há tempo para ela se envaidecer. Os zumbidos aumentam, junto com o medo. Fica a sensação de haver uma multidão de vozes em sua cabeça. O esforço para não demonstrar a aflição interna, no rosto, cresce. Até algo se materializar em sua mente. Algo forte, expressivo. Não há como ter certeza se é uma mensagem recebida; uma ideia instintiva; ou até mesmo um delírio. Letícia, porém, decide levar adiante, como se soubesse não ter escolha:
— Isso esteve de posse de um fotógrafo. Ele trabalhava aqui. Mas já morreu.
Um silêncio perscrutador sai dos olhos de Augusto. Por breves instantes, nada ocorre à moça; e esta prefere, então, manter-se quieta e encenar um rosto de expectativas e meditações. Quase se abala com a respiração pesada e pouco paciente vinda do homem. Mas segura-se bem, parecendo serena ao ouvi-lo.
— Um fotógrafo, é?
Percebendo a dissimulação do cliente, Letícia prossegue calada, porém olhando agora para seus olhos. Augusto finge procurar algo nos bolsos para evitar ter de encará-la.
— Não houve outros profissionais por aqui? Outros serviços...? - Indaga o cliente, em tom hesitante.
— O senhor procura uma pessoa ou um objeto?
A pergunta de Letícia quase consegue soar como desprovida de ironia. Seu visitante muda a expressão facial, sugerindo sentir-se acuado. E isso não é muito bom: pequenos roedores, se encurralados, costumam revidar de forma brutal, como se soubessem estar diante de um "mato ou morro". E este homem tem ares de "grande roedor". Pode ser o momento de haver um "respiro" na conversa.
— De qualquer forma, os materiais de trabalho de antecessores, ocupantes desta sala, não estão mais aqui.
Dúvida e curiosidade aparecem na face de Augusto, além de um quase imperceptível início de distensionamento.
— Supondo que o que procuro estivesse mesmo com alguém que trabalhou aqui, onde poderiam estar esses...
— Deseja ajuda mística para achar o que procura? - Desfere Madame Lê.
— É a razão de eu ter vindo, certo?
A resposta do homem provoca novos zumbidos na jovem. Ele não está dizendo toda a verdade. Mas não importa, neste momento. Ela está decidida a seguir a sugestão materializada dentro de si.
— Começaremos com cartas... pode ser?
Há um discreto estremecimento do homem, ante a menção da palavra "cartas". Passaria despercebido para muitos. Não para Letícia. Como nada mais é dito, a mulher vai até seu armário e pega o tarot. O zumbido é ainda mais forte quando volta à mesa, segurando o jogo.
— Quando você tocar no jogo, deve ter bem clara, na mente, a pergunta que deseja ver respondida.
Ela embaralha as cartas uma vez e pede a Augusto para cortar o jogo. Com ar desconfiado, Augusto a atende. Quando ela toca um dos dois montes para escolher os arcanos, um turbilhão invade a espinha da sortista. O tremor irradia seu cérebro. Imagens caóticas, cores agressivas e lembranças de dores nunca experimentadas tomam conta de seu ser. Mesmo tendo isso ocorrido apenas em seu interior, um breve espasmo é externalizado, assustando o cliente.
— O que houve?
Seu tom de voz é tenso. Letícia busca manter o controle e, ao mesmo, tempo acalmá-lo. Algo lhe diz para não deixá-lo desistir.
— Está tudo bem. São apenas energias.
Augusto não se acalma muito. Mas mantém-se aguardando. As três cartas são escolhidas. Primeiro, a Roda da Fortuna; depois, o dois de espadas; por fim, o cinco de espadas.
— E então? O que dizem essas "suas cartas"? — Pergunta o homem, escondendo seu medo com um sorriso cético nada convincente.
— Não são minhas. São suas, neste instante. Bom... é preciso interpretar os arcanos e associá-los à pergunta que o trouxe aqui. Irei falando e você vai refletindo.
Um olhar inquietante parte do cliente. Letícia disfarça seu mal-estar crescente e começa a leitura.
— A Roda da Fortuna indica: você vai encontrar o que procura. Mas talvez não seja apenas o objeto: essa carta fala literalmente em "colher o que se planta".
— O que está insinuando? — Reage o cliente, em tom alterado.
— Estou lendo cartas, senhor. Nada insinuo. Nem sei qual é sua busca.
— Hah! Vamos lá... O que diz a próxima?
Cada vez mais intranquila, porém movida por uma voz interior que a encoraja, Letícia prossegue.
— O dois de espadas anuncia um duelo, um confronto. A ocorrer ou já ocorrendo. Importante dizer: isto não significa necessariamente algo literal.
— Duelo e confronto? É a história da minha vida... Mas quer saber? Não perdi nenhum até hoje!
O comentário do homem é quase uma bravata, um rosnado. Madame Lê retira uma das mãos da mesa e, de forma discreta, aciona algo na tela do celular.
— E a terceira carta? Diz o quê? Vou morrer, por acaso...?
Ignorando o sarcasmo e o que mais possa haver, de forma velada, na fala, a sortista mantém a fleuma e interpreta o último arcano menor:
— Cinco de espadas não fala de morte. Mas pode estar falando de derrota.
A expressão do homem se altera por completo, como se estivesse sendo chamado para uma briga. Então, passa-lhe uma ideia assustadora na mente: a carta anterior anunciara isto: um duelo, um confronto!
— Que brincadeira é essa?
Sua erupção verbal não altera a mulher. Não na postura, ao menos. Ela prossegue seu rito de interpretação.
— A derrota estaria determinada por uma visão distorcida das coisas e pela avareza. Faz sentido para o senhor?
Um zumbido estridente invade Letícia de um modo ainda mais avassalador do que as experiências anteriores. Augusto ergue-se da cadeira, assustado e possesso.
— Está zombando de mim, sortista de meia tigela?
Seu brado é grosseiro e ameaçador. Mas a cartomante mal o ouve. A voz do homem parece um sussurro distante. Ela se sente estranha, como se estivesse despregada da cadeira. Sua boca se abre para falar, mas é como se fosse uma gravação, pois não sente ter planejado a frase.
— Zombando, Augusto Heriberto? Por que eu zombaria de alguém tão perigoso?
A menção de seu segundo nome deixa o homem perplexo. E ainda mais apavorado.
— Como sabe esse nome? Eu não o informei!
— Não. Não o informou. Acredita ter cuidado bem disso; acredita ter tudo sob controle. Como todos os egocêntricos e ambiciosos que conheci, ao longo da vida.
— Que conversa é essa? — Reage o homem, sentindo algo fora do lugar na última fala da vidente.
— Pois é... conheci tantos... E eles nunca me enganaram. Exceto você, que se aproveitou de meu coração tolo e me cegou.
— O q-quê?
Estarrecido com a frase, o homem enfia a mão no bolso interno de seu blazer, e puxa uma pistola diminuta.
— Chega! Não sei qual a sua ligação com aquele detetive mequetrefe que andava de coisinhas com a Dona Lucinda, mas é evidente que sabe mais do que diz. Então trate de me contar onde está a pasta! Agora!
Mas a resposta da sensitiva é ainda mais estranha:
— Quanta presunção! Acha que eu deixaria um documento, dessa importância, tão fácil assim de ser achado? O Lourenço só tinha cópias aqui, Bebeto...
A menção de seu apelido termina de desarvorar Augusto.
— Pare! Já se divertiu o suficiente! Não sei como descobriram tantas coisas, mas...
— Onde você me deixou, Bebeto? O que fez comigo? Depois daquele almoço em Colombo, onde você me levou?
A menção ao almoço faz a sanidade de Augusto Heriberto desabar.
— Tia?? Não! Você está morta! Vi onde o Alonso te enterrou! Não é você!
— Então você mandou me matar mesmo, né? Como pôde? Eu te amava! Você era o filho que eu não tive.
— Filho que não iria ficar com nada!? Que amor lindo, hein?
— Iria tudo pra você naturalmente. Eu não me importaria. Mas suas maldades, sua cobiça, apareceram... Elas destruiriam tudo. Como destruíram você... Por isso fiz um testamento. Pra impedir esse desastre.
— Você morreu!
Um pequeno reflexo luminoso faz o homem olhar para a direção da porta do banheiro. É quando tem a impressão de ver um vulto na parede ao lado. E desse mesmo ponto, vem uma voz familiar.
— Se morri, como estou aqui te olhando?
Fora de si por completo, Bebeto vira-se em direção ao grande espelho e atira. A bala estilhaça o vidro, resvala em uma superfície metálica postada atrás do forro, e retorna, ferindo o homem, que cai desacordado. No mesmo instante, Wallace aparece, empurrando a porta da entrada, esbaforido.
— Meu Deus! Que susto! Morri de medo de ser você no chão...
A fala do primo encontra eco num rosto sem a expressão, ou o sorriso, de Letícia, mesmo sendo ela.
— Lelezinha? Tá tudo bem?
O zumbido vai diminuindo e a voz de Wally vai ficando mais audível para a sortista. Ela o olha de forma desorientada.
— O-oi... Eu... Nossa! O estresse da situação me deixou meio aérea, acho.
— Calma querida. Está tudo sob controle, agora. A polícia deve estar chegando. Eu os chamei assim que você mandou a mensagem.
Os dois se abraçam. Então, ela olha em direção ao espelho estilhaçado. Ao centro de sua moldura, na parede, há uma caixa metálica embutida. Letícia sente-se impelida a tocar no recipiente e abri-lo. Em seu interior, alguns documentos são encontrados. Entre eles, um envelope costurado e com lacres nos pontos de nós da linha.
— Deve ser um testamento. Alguns os embalavam com esses detalhes. - Comenta Wallace.
— Você sabia desse material aqui?
— Não, até estudar o conteúdo daquela pasta da Sra. Kniss. Ali, encontrei uma observação sobre o compartimento secreto; e um pedido para remover seu conteúdo, em caso de venda da sala; ou se esta via do testamento se fizesse necessária.
— "Esta via"? Então, havia mais de uma?
— De acordo com o dossiê, sim.
As frases ouvidas da Senhora Kniss, antes com aparência enigmática, vão se tornando claras, enfim.
— Mas, pelo visto, ninguém as apresentou. Pois o tal sobrinho se apossou da empresa. E sem contestação do advogado. - Murmura a sortista.
— Você tem um faro bom mesmo, hein, prima? Foi pesquisar a história da empresária desaparecida e já sacou que sobrinho apareceria por aqui...
Com um sorriso amarelo, Letícia corrige um pouco a fala do Wallace:
— Na verdade, não tinha essa certeza. Pedi a você os equipamentos de gravação e filmagem, na esperança de registrar algum outro fenômeno ocorrido, além de segurança, claro.
Wallace a olha, interrogativo. A prima esclarece.
— Eu não exijo nome completo nos agendamentos, para sinalizar respeito à privacidade dos clientes. A maioria não quer ser identificado como crente em "esoterismo, sorte e destino". Então, não tinha como saber ao certo se Augusto H. seria mesmo Augusto Heriberto Kniss. Mas não pretendia me arriscar, né? Nem com isso, nem com novas paranormalidades.
— Uau! Mas... prima, como conseguiu não ser atingida pelo tiro? Pura sorte?
Letícia olha para a moldura do espelho estilhaçado, com ar enigmático e murmura.
— Ainda preciso entender melhor. Mas, por ora, essa é uma boa teoria: a sortista teve sorte.
Um sorriso tímido e empático aparece em ambos, enquanto a polícia chega ao recinto.
Enquanto Wallace entrega as gravações a um dos policiais, e os outros recolhem o "suspeito ferido", Letícia olha para o local do espelho mais uma vez, grata e intrigada. Mas não só com toda a peripécia dos últimos dias.
Com o estilhaçamento do vidro, ela decide olhar melhor para aquela peça fixada na parede, tão destoante do ambiente e do próprio estilo da sala. Examinando melhor a composição da moldura, percebe ser madeira de boa qualidade. Boa mesmo. Daquelas que hoje custariam caro se, e quando, ainda encontradas à venda.
Neste instante, um breve e pequeno reflexo atinge seus olhos pelo lado esquerdo. Por instinto, ela se vira nessa direção e começa a observar a parte interna da moldura, naquele lado. Acaba encontrando algo inusitado. Num lugar improvável para haver esse tipo de peça, está fixado um diminuto brasão com as iniciais "L" e "K" fundidas. O metal a formá-lo sugere ter sido trabalhado de forma clássica, sendo algo mais comum em móveis de famílias com bons recursos.
A outrora mentalista, vidente, cartomante, sortista por diletantismo, dá-se conta mais uma vez: seu mundo mudou e não tem volta! A fronteira está expandida. Até prova em contrário, qualquer explicação presumida pode ser real. O novo discernimento será também um desafio, até compreender no que acreditar e do que seguir duvidando. Mas, para esta última descoberta, vai se permitir uma presunçosa dedução, sussurrada:
— "L" e "K"? Este espelho era dela, então?
Após um primeiro depoimento aos policiais e a concordância em comparecer à delegacia para um relato maior, os dois primos estão sozinhos na sala, mais uma vez.
— Bom, é hora de irmos também, né? Você deve estar exausta...
— Nem me fale, priminho. Só quero um banho e cama!
— Venha. Eu te deixo em casa.
Letícia sorri e aceita, mas pede que ele saia da sala antes dela, pois deseja ficar um minuto sozinha naquele espaço. Mesmo sem entender, Wallace concorda.
Após ter a certeza de estar só, Madame Lê faz uma oração bem leve dentro de seu imóvel comercial. Então, aproxima-se do brasão na moldura e diz:
— Vá em paz, Dona Lucinda. E muito obrigada!
Em seguida, faz um sorriso quase maroto; lembra de uma recorrente e pouco compreensível fala da aparição; e completa:
— Obrigada também, tio! E pode deixar: não vou contar nada sobre o "presentinho" da sua "cliente". Tampouco especular sobre a tal "energia certa", viu?
Letícia pega seus pertences. Anota as agendas dos próximos dias, pois precisarão ser canceladas até a liberação do espaço. Isso não a preocupa muito. Sabe que será por pouco tempo. A própria notoriedade do ocorrido terá vida curta: páginas policiais da metrópole comentarão o caso por dois dias, no máximo, e de forma superficial. Em uma semana, acredita, já poderá atender outra vez.
Então, apaga a luz e fecha a porta, enquanto o ranger clássico se faz ouvir. Desce as escadas, em destino ao restante da cidade. Um lugar, a partir de agora, conhecido e desconhecido.
Sua trilha de redescoberta, contudo, já teve início.