Sandro Sedrez dos Reis
Contos, Crônicas, Novelas, Ensaios e Reflexões
Textos

'TÁ DESCENDO?

 

 

Bairro Água Verde

 

Final de expediente, num prédio comercial da Avenida República Argentina. A discreta iluminação no batente indica 25° andar. Pode ser ouvida uma pequena campainha confirmando que a cabine móvel já está posicionada no pavimento. As portas do elevador se abrem. Elmo Piazza entra distraído, como faz quase todos os dias, ao chegar ou ao sair de seu escritório de design. Assobia a canção "Cotidiano", de Chico Buarque", e olha para o relógio no celular. Em seguida, prepara seu sorriso invulnerável, para seguir cumprimentando as pessoas que entrarem nos próximos andares da descida, como de praxe. Quase todos os dias. 

 

- "Todo o dia ele faz tudo sempre igual". – Murmura, adaptando a letra da música para si mesmo, enquanto solta a respiração em ruidosa lufada. 

 

Sua expressão facial navega entre o fastio com a própria rotina e o desapontamento com o ritmo do mundo. O assobio prossegue na adequada trilha sonora para o momento, enquanto sua mente parece escutar os versos de outro trecho da mesma canção de Chico Buarque. 

 

Todo o dia eu só penso em poder parar

Meio-dia eu só penso em dizer não

Depois penso na vida pra levar

E me calo com a boca de feijão!

 

Portas se fecham. Um ligeiro oscilar indica que a descida começa. A iluminação e o ar estão mais do que satisfatórios. A tela de anúncios funciona bem, com imagens em cores agradáveis. E a luminosidade, enfim, parece regulada para manter a atratividade sem cansar demais os olhos dos frequentadores.  

 

designer aproveita a breve tranquilidade de seu deslocamento para desligar a mente dos problemas e das rotinas de seu trabalho. Sempre surge, nessa hora, uma lista de pontos a resolver ou dar sequência em sua vida. Decisões não tomadas: tantas delas já prescritas, sem chance de resgate; e algumas poucas, esperando sua ação ou o mesmo destino nas areias do tempo. 

 

Não é uma lista muito extraordinária. Se vai investir em sala própria, ou continuar pagando aluguel. Se aceita a proposta, do velho amigo do ensino médio, para uma aventura mochileira pela América do Sul, nas próximas férias. Quando visitará seus familiares; como ajudará na pacificação de ânimos entre irmãos e cunhados, rompidos por causa de disputas políticas.  

 

E, claro, se vai dar trato à lacuna em seu coração, se vai ainda arriscar sentir alguém em seus braços, sabendo que sempre pode haver um término, uma frustração. Nesse ponto prioritário de suas conjecturas, vem se perguntando, há alguns meses, quando terá coragem de conversar com a mulher do 18°. Aquela que, no presente, tem chamado a atenção de seus sentidos, todas as vezes que compartilha a subida ou a descida no prédio. Sua mais recente aposta poética. Seu "crush platônico", como alguns diriam. Título que ele vive sonhando em trocar por algo mais concreto.  

 

Já descobriu não ser brasileira, pois fala com algum sotaque. Parece ser engenheira mecânica e trabalhar para uma montadora em São José dos Pinhais. Alguém a chamou de Clara, numa das poucas vezes em que entrou acompanhada no elevador. Não sabe dizer se tem compromisso com alguém ou não, mas jamais a viu com qualquer par romântico. Seu perfume parece ter cardamomo e café, o que lhe agrada muito. Cumprimenta balançando a cabeça, sorrindo e empurrando os óculos sobre o nariz. Caminha de forma suave e discreta, mas sem deixar de ter um balanço harmônico e encantador; ou ao menos é como seus olhos a registram. Olhos e hormônios.

 

Vigésimo-primeiro andar. Uma parada e as portas se abrem. O mesmo sujeito de sempre, com ar estressado e terno escuro, adentra sem cumprimentar, simulando estar muito absorto em alguma leitura no celular. Há quase um ano. Elmo não concluiu nada sobre ele; aliás, nem procura mais saber.  Após vinte e cinco tentativas de cumprimentos sem obter sequer um resmungo do cidadão, jogou a toalha, resumindo-se a fitá-lo e mover a cabeça de forma reverente e leve, a cada encontro. Uma única vez, enxergou o sobrenome Braga num crachá caído de seu bolso; mas como não havia foto, nem sabe dizer se pertence ao antissocial ou não. 

 

Décimo-nono andar. Dois jovens aguardam: um com calça e blazer descolados; outro com terno clássico, tão impecável que daria pra imaginar estar indo a um casamento. O convívio regular na descida do prédio o fez ouvir seus nomes: Daniel e Charles. 

 

- 'Tá descendo? - Perguntam. 

 

A vontade de Elmo é responder com didática e ironia, já que o painel externo, junto dos botões de chamada, quase sempre é claro sobre qual o sentido percorrido pelo elevador, a cada instante. Mas sabe que falar assim seria tosco e desnecessário. É uma pergunta habitual. E está tudo certo. 

 

-Sim. 

 

Eles agradecem e adentram. Conversam em voz alta e risos ruidosos, como se o conteúdo da fala fosse menos importante do que anunciar sua presença e reafirmar sua crença no êxito material. Assuntos cíclicos: ações, investimentos, metas atingidas, chefes estressados. Aqui e ali, piadas sobre futebol. Esses tagarelas só coincidem com seu horário de saída às quartas-feiras. Nunca entendeu porque. Mas, também, não tentou muito. Admite para si achar ambos irritantes em seu barulho excessivo, ainda que mais simpáticos do que o cara do vigésimo-primeiro. Como sempre, falam mostrando os dentes e olhando para todos os ocupantes do elevador. Elmo optou por interpretar haver cumprimentos e sociabilidade de ambos, no meio de todo esse rito espalhafatoso praticado.  

 

Décimo-oitavo, enfim. O momento mais vibrante de seu passeio cotidiano no caixote metálico. E o transporte não o desaponta: há uma parada e as portas se abrem. Clara e outra mulher aparecem, compondo o grupo de passageiros que agora segue em descendente por cinco andares, sem parada. Tempo suficiente para que Elmo encante seus olhos com cada detalhe de sua estrangeira favorita. Cabelos tingidos de escuros e amarrados; óculos redondos; maquiagem tradicional; pele morena clara, às vezes amarronzada, às vezes esverdeada. Estatura mediana, mas os variados saltos dos sapatos que utiliza, a cada entrada no elevador, impedem-no de concluir com precisão. Esbelta, sem muitas curvas e com aquela expressão que torna difícil concluir sobre a idade. As duas mulheres cumprimentam a todos e são correspondidas, ainda que em tons diferentes, por três dos quatro homens. 

 

A conversa entre Clara e a outra mulher parece animada. E embora os grasnados de Daniel e Charles não lhe permitam ouvir bem, dá pra perceber que as duas usam outro idioma. Não consegue ter certeza se é catalão ou algum dialeto próximo. Mas o brilho nas faces, além de breves risos, não deixa dúvidas: o assunto está longe de ser profissional.  Por um breve instante, ele tem a sensação de que é olhado de relance por sua musa ilusória. E, também, por sua companhia, cuja aparência sugere alguém um pouco mais jovem. Seu olhar brilha com a vivacidade de quem está adorando o momento presente. Os cabelos negros e a pele morena compõem bem com a cor dos olhos, dando ao sorriso um branco ainda mais intenso do que é, de fato. 

 

Súbito, vêm-lhe à mente a pergunta de quem já não distingue curiosidade de inquietação: e se as duas estiverem compromissadas uma com a outra? Uma ideia logo posta em segundo plano. Afinal, se Clara tem ou não alguém na vida, nada muda. Ele nada fez mesmo, até hoje, para tratar de sua atração. Contudo, no instante exato desta conclusão óbvia, vozes de sua mente lhe alertam que é observado por uma das duas. Envergonhado, não arrisca descobrir por qual e muda os pensamentos.

 

Décimo-terceiro andar. O homem calvo e de olhos amendoados que se autodenomina Mestre Wei entra, usando as recorrentes indumentárias de sua academia de lutas e doutrinas orientais. Cumprimenta a todos, põe as mãos para trás do corpo e estufa o peito, como se estivesse de prontidão. O sr. Piazza sabe pouco sobre as filosofias que cercam as artes marciais, mas sempre imagina que deva haver algum significado para aquela pose, além do reforço publicitário que parece dar para o negócio do profissional. Como fica sempre a impressão de se poder confiar na seriedade de Wei, acredita que a estratégia, qualquer que seja, funciona. 

 

- Boa tarde! 

 

O cumprimento é tão sonoro que a alma de Elmo o registra antes de seu cérebro informar já estarem no andar seguinte, e com as portas abertas. O décimo-segundo possui um complexo clínico focado em pacientes adultos. Dona Helena, simpática septuagenária que tem consultas médicas regulares ali, cumprimenta a todos, sendo ignorada pelos dois tagarelas e pelo misterioso "Talvez Braga" do 21º, mas bem acolhida pelos demais. 

 

- Boa tarde! 

 

- Bona tarda! 

 

A saudação da amiga de Clara, em resposta à de Helena, confirma seu idioma. Elmo agora se pergunta se as duas são catalãs e de onde. Barcelona, talvez. Mas sua intuição sugere outra origem para a mulher que alvoroça seus hormônios. Por alguma razão, pensa sempre nas Ilhas Baleares. Claro que ajuda muito tal dedução já tê-la visto com mala de viagens, contendo um selo de Maiorca. Mas pode estar enganado, movido por suas fantasias de, um dia, conhecer esse lugar, de preferência em boa companhia. 

 

Especulações assim dão atividade à sua mente, no passatempo diário de ignorar seu fantasma secreto, enquanto é transportado no caixão metálico do sobe-e-desce predial. A claustrofobia, conhecida sua desde a pré-adolescência, ao menos, tem se mantido comportada e invisível em sua vida profissional, nos últimos anos. Sempre a custo de esforço pessoal e terapias, mas também graças a suas engenhosas fantasias mentais: enquanto se concentra nas pessoas, esquece o elevador e seu diminuto tamanho. 

 

A vibração brusca sob os pés indica nova parada. Mas não parece no tempo certo. É como se tivesse ocorrido antes da hora. Os segundos passam e todos começam a demonstrar o mesmo estranhamento. 

 

- Ué!? Tá demorando pra abrir a porta. - Declara Daniel, na sua habitual voz estridente. 

 

Pela primeira vez, desde o vigésimo-primeiro andar, o nada comunicativo homem do celular ergue o rosto para além da tela e demonstra alguma reação ao ambiente: parece preocupado. 

 

- Ah, meu Deus. Será que ele pifou? - Constata Dona Helena, lamuriosa, mas branda. 

 

- Què passa? - Pergunta a parceira de sua musa. 

 

- El ascensor parece fuera de servicio. - Responde Clara. 

 

- Fora de servei? 

 

- Sí, Laura. 

 

Por certo, algum lugar da mente do designer registra essas duas novas informações: o nome da moça é Laura; e o idioma usado por ela parece mesmo catalão, enquanto Clara responde em espanhol, mesmo entendendo a fala da "amiga". Suas vozes internas, se estivessem atentas agora, iniciariam a suposição de que as duas são de comunidades diferentes, aumentando as chances de possuírem em comum apenas a assessoria à montadora. Ele poderia ficar bem satisfeito com essas conclusões, mesmo que fantasiosas, se conseguisse pensar em algo mais além do outro fato: o elevador está parado e com a porta fechada. 

 

Passam-se dois minutos, nos quais a ensaiada civilidade e a falsa tranquilidade do silêncio são o discurso defendido pelos oito ocupantes. No segundo seguinte, um resmungo de inquietação, feito por Laura, desencadeia conversas agitadas e pessimistas entre Daniel e Charles, culminadas com um assustador soco numa das paredes, efetuado pelo "rei da carranca", o próprio e único "Sr. Talvez Braga".  

 

- Calma, pessoal. Por certo, logo voltará ao funcionamento. - Comenta Wei, com voz serena e a tradicional aparência de equilíbrio. 

 

- Hah! Ingênuo... O prédio está quase vazio e a administração do condomínio piorou muito. Ou fazemos barulho, ou vamos dormir aqui! - Fala o "esquisitão do 21º", ácido e impaciente. 

 

É a primeira vez que Elmo o escuta formulando frases, variando em tons e sílabas. Na verdade, o designer acredita ser o "debut" daquela voz para qualquer outro personagem recorrente da cabine de transporte do condomínio. Isso deveria estar aguçando e saciando suas especulações internas. 

 

Mas, no momento, está ocupado demais tentando controlar seus nervos. E evitar o suor ansioso. Ainda mais diante de Clara. Sua cabeça fervilha em conflitos sobre isso. Uma parte das vozes interiores cobra-lhe compostura, pelo bem de suas fantasias vaporosas com a "dama do 18º". Outra, zomba da motivação de sua prioridade, já que nunca passa do olhar dissimulado e nem sabe se um affair é factível. E há ainda um terceiro grupo menos falante, por sorte, em sua mente, sugerindo a ele assumir suas fobias e ter seus chiliques de imediato. A luta por manter o garbo é hercúlea, mas determinada.  

 

- Por que você disse isso? Aconteceu antes? - Pergunta o já não tão tagarela Charles para o "antipático do 21º". 

 

- Acontece o tempo todo... Essas administradoras de condomínio só encarecem as taxas, mas não estão nem aí para os problemas, quando estes acontecem. Nem ficam no mesmo prédio! Para eles, uma ocorrência é só um ímã tirado ou colocado num painel magnético, na parede do escritório. Estão cagando pra nós! 

 

- Não lembro de nenhum episódio em que algum problema, neste prédio, tenha ficado sem solução por muito tempo. - Arrisca o designer, menos interessado em defender os acusados do que em manter ideias positivas no horizonte, para segurar seu pânico na jaula. 

 

A resposta do "Talvez Braga" à sua intervenção vem na forma de um olhar severo, acompanhado de silêncio acusatório e pitadas de desdém. Embora cause-lhe algum embaraço reavivar experiências pregressas de intimidação pública, Elmo Piazza finge não se abalar. E arrisca uma espiada, com o canto dos olhos, para ver se a cena é acompanhada pelas duas moças. Acredita ter chamado a atenção de Laura. Não sabe o que concluir, entretanto, sobre sua musa. 

 

Passam-se mais quatro minutos. Clara tenta usar o celular, enquanto sua companhia expressa muita preocupação, apertando o antebraço da outra com a mão.  

 

- Sem sinal. - Diz a mulher. 

 

De imediato, o "esquisitão do 21º" olha para a tela do seu aparelho. E a expressão de desapontamento confirma estar com o mesmo problema. Dá até pra ouvir um palavrão mudo, no movimento de lábios sobre dentes trincados. Todos decidem conferir seus equipamentos, então. E a resposta é a mesma, independentemente de operadora: nada. 

 

- Tentem o interfone do elevador. 

 

- Esse é do modelo antigo.  Estão trocando um de cada vez. Só o botão de alarme ainda está ativo. 

 

- Apertei, mas não sei se está funcionando. Não tem como confirmar. 

 

As falas dos homens vão se revezando em torno da mesma imagem. Justo aquela contra a qual Elmo luta. Para não vê-la formada nos olhos de seus fantasmas. Dona Helena, por sua vez, permanece serena. Ou, ao menos, aparentando isso.  

 

Ninguém mais quer olhar com frequência pro relógio. Mas é possível sentir a passagem de muitos minutos. O designer conseguiria contá-los, só na evolução da carranca do "Talvez Braga", se não estivesse preocupado com suas próprias caretas internas. 

 

Um odor mais adocicado e enjoativo começa a ocupar suas narinas. "Meu suor...já?", pensa Elmo. Sempre que fica tenso, isso acontece. Detesta emitir cheiro de medo. Embora estranhe a fragrância parecer mais forte, fora do habitual. Ainda mais quando sequer sente a umidade entre a pele e a roupa. Mas não tenta especular muito sobre como isto pode estar tão intenso, em seu olfato. Sua prioridade é ocupar a cabeça com o máximo de ideias que o afastem da mais leal de suas companheiras, a fobia. Para isso, vale até dizer pra si: "melhor sudorese nervosa do que flatulência; aí, sim, isso aqui ficaria um inferno". 

 

- Tô dizendo... se não começarmos a gritar, vamos dormir aqui... e eu quero ver ter ar pra todo mundo! 

 

A fala do "Talvez Braga" faz Laura arregalar os olhos e fitar Clara, interrogativa. Esta cochicha a tradução precisa do que foi dito, confirmando o que sua companhia pensou mesmo ter entendido. É possível captar a apreensão no olhar umedecido da moça. 

 

Senhor, poderia parar de ficar a repetir isso? Não está a ajudar! - Reage a musa imaginária de Elmo. 

 

A frase, envolta pela voz que adora ouvir, com resquícios de sotaque e alguns maneirismos, tem o efeito de música motivacional para o designer. Sem saber como, um tom alto, firme e seguro transporta palavras de seu peito para fora. 

 

- Pessoal! Vamos ficar calmos por um instante? Alguns de nós podem estar com muito desconforto e merecem nossa empatia! Além disso, não há como um elevador ficar sem ar. São projetados para evitar isso. 

 

Menos pelo que é dito, e mais pelo modo como o é, as pessoas silenciam e o encaram. Dona Helena, inclusive, sorri, em aprovação. A expressão do cara do 21º parece-lhe menos petulante, pela primeira vez em muitos encontros casuais de final de dia. Mas está longe de ser pacífica ou agradável a seus olhos. 

 

- Certo. O que você propõe? - Indaga Charles. 

 

O sr. Piazza petrifica por dentro. Não pretendeu propor nada. A reação fora impulsiva, talvez para chamar a a atenção da mulher que admira. Mas é fato que criou a expectativa de ter algo a dizer. O que fazer agora? 

 

- Vi um filme em que o sujeito usou um objeto pontudo de metal para abrir a porta do elevador. - Murmura Daniel. 

 

- Dani, tem alguém com cara de Chuck Norris aqui? Isso é impossível! Afora que, se fosse, poderíamos piorar as coisas, e não resolvê-las.  

 

A reação de Charles surpreende seu parceiro, fazendo-o se calar, em pose de menino ao responder errado a pergunta em prova oral. Elmo chega a rir por dentro, imaginando que o tagarela não distinguiria vida real de jogos virtuais. Sabe ser um pensamento cruel, mas como o ajuda a não afundar no medo, deixa a mente seguir sem censura. Mas não consegue evitar a olhada involuntária para os lados, temendo ter sido flagrado em alguma expressão perversa na face. Só então, nota um par de olhos observando-o muito: Laura. Por que não a Clara? 

 

- Que tal se aguardarmos em silêncio por mais um minuto, para ver se ouvimos algum movimento do lado de fora? Após isso, poderíamos pensar em bater na porta ou algo assim, mas de forma a passar uma mensagem.  

 

A sugestão sensata e, talvez minuciosa demais, parte de Dona Helena, para a inegável surpresa de todos. 

 

- Passar uma mensagem? Conhece alguma melhor do que gritarmos por socorro, vovó? - Explode, quase rosnando, o "Talvez Braga", enquanto retira seu paletó e começa a dar socos descompassados na porta da cabine. 

 

A agressividade choca a todos. A dupla tagarela faz um sonoro e simultâneo "ei, mas o que é isso?!", como num jogral bem ensaiado. Laura e Clara fuzilam o grosseiro homem com os olhos. O sujeito assume postura defensiva, como esperando um ataque, enquanto respira de forma ruidosa e primitiva, aparentando começo de tontura. Wei ergue os braços, em gesto claro de mediador, interpondo-se como território neutro. 

 

Indignado com a fala estúpida para Dona Helena, o designer também está pronto para pular no pescoço do "infeliz do 21º", quando percebe, na camisa usada por aquele infame, duas manchas enormes sob as axilas. A imagem soa-lhe como um tapa, reforçado por um soco do ar em suas narinas: o cheiro de medo está ali. É do "Talvez Braga", não dele!  

 

- Está tudo bem, senhor. É bastante comum sentir esse pânico. Garanto que há mais pessoas aqui na mesma situação. Não precisa ter vergonha. - Pondera Dona Helena, parecendo uma mestra zen. 

 

- Vergonha?! - Reage o dito antipático, enquanto seu rosto oscila entre indignação e fragilidade. 

 

A fala da velhinha, em tom sereno e cadência quase maternal, termina de desmontar as armaduras de Elmo, instando-o a participar. 

 

- Ela tem razão. Veja o meu caso: costumo ter pânico em lugares fechados, o que me atrapalha muito. Sou claustrofóbico, senhor...?  

 

O homem, até então visto como grosseiro e antipático, empalidece, encolhendo-se, despido de seu poderoso disfarce. Os lábios tremem, os olhos ameaçam encharcar, enquanto se encosta na parede e responde ao designer

 

- T-Tobias. Meu nome é Tobias. 

 

Agora, não há como fingir perante Clara. Sua máscara de autocontrole foi exposta. Elmo Piazza sabe: cabe a ele acolher o "insuportável Tobias do 21º". Por uma forçada tentativa de nobreza. E até como penitência, pois começa a suspeitar: toda a empáfia rotineira do colega de prédio deve, na verdade, ser sua reação para suportar a cabine do elevador. Ele, mais do que ninguém, deveria ter presumido isto. E ser o último a julgá-lo; não o primeiro a condená-lo ao posto de super imbecil. 

 

- Certo, Tobias. Sou Elmo Piazza. Trabalho no 25º como designer. E, todos os dias, invento jogos mentais para conseguir subir e descer neste elevador sem ter desconforto.  

 

- E funciona?  

 

A pergunta vem de Clara. Isso o deixa perplexo! Esperava ouvir algo do próprio Tobias, parte interessada. Ou até de Dona Helena, que parece ter assumido a liderança do grupo. Mas veio de sua musa involuntária! Quantas vezes imaginara algum pretexto para iniciar uma conversa com ela e jamais tentara? E, justo ao expor aquilo que sempre quis esconder, ela lhe dirige a palavra. 

 

- Na maior parte das vezes, sim. Não sempre. Mas estou trabalhando isso, todas as semanas, em minhas terapias. 

 

A fala do designer, agora, é branda, porém límpida e segura. A mulher cobiçada em seu imaginário sorri, pensativa. Olha para sua companheira, que corresponde com uma expressão cúmplice, voltando em seguida a fitar Elmo. A cena o deixa confuso. Não parece algo ruim, mas soa indecifrável. 

 

Estes pequenos detalhes quase o fazem deixar de perceber: Wei e Helena cochicham algo e balançam a cabeça, concordantes. 

- Venha, sente-se. Vamos fazer alguns exercícios de respiração. - Diz Dona Helena a Tobias.

 

O até então desagradável homem responde à proposta, como uma criança indefesa. Em poucos instantes, está sentado ao chão, seguindo cada orientação do instrutor e da veterana. Sob os olhares admirados de todos. 

 

- Se alguém mais quiser participar... 

 

A oferta de Helena é acolhida de imediato por Laura. Depois, Charles. Clara observa, de pé, com sorriso brando. Daniel também, mas embaraçado. Elmo hesita por um instante, olha para sua apreciada musa, e em seguida adere ao grupo do chão, aos poucos sentindo o benefício da prática. 

 

Passam-se mais quinze minutos e o ruído de ferramentas e mecanismos pode ser ouvido. Alguém está trabalhando na abertura da porta. Cinco dos seis sentados ao chão sorriem, ao que são correspondidos pelos dois de pé. Tobias não consegue mostrar os dentes, mas o semblante aponta alívio também. 

 

- Olá! Estão nos ouvindo? Sou o sargento Fontes. Mantenham a calma que, em instantes, iremos resgatá-los. 

 

- Entendido! Estamos bem, por aqui. Aguardaremos. - Responde o vozeirão de Mestre Wei, enquanto sorri para Helena, em clara gratidão e admiração.  

 

A sequência é bem conhecida e, aí sim, não tão diferente dos filmes citados por Daniel: as portas são abertas; todos percebem que a cabine está fora do ponto certo do pavimento; braços solidários vão se encadeando até a última pessoa sair. Aos interessados em explicações, o líder do grupo especial de bombeiros esclarece as possíveis causas das panes simultâneas em três elevadores, sendo o deles o último a ser abordado. Um soldado socorrista presta assistência e orientações a Tobias.   

 

Elmo despede-se de Dona Helena e aproveita para elogiá-la, perguntando de onde extrai tanta tranquilidade. 

 

- Tenho me submetido a ressonâncias magnéticas com frequência, para acompanhar meus problemas de saúde. Então, lugares fechados não me inquietam mais. Mas, nas salas de espera, vejo muitas pessoas que sofrem para fazê-lo, justo por ser num "túnel estreito". Aprendi a reconhecer essas pessoas e, de alguma forma, ajudá-las a relaxar. 

 

- Foi admirável e encorajadora. Sabe, olhei para todos durante esse tempo que ficamos ali. Talvez o Mestre Wei tenha sido o que menos se incomodou, mas todos nós sentimos algum tipo de medo irracional, por menor que fosse. A senhora não?  

 

- Não sei dizer ao certo, meu filho. Mas sei que o único medo que me restou, ao longo de minha vida, foi o de morrer sozinha. E esse temor, eu sei, já não tem mais sentido. - Responde, com um sorriso oscilante. 

 

- Por quê? 

 

- Porque já sei meu diagnóstico. Devo morrer em poucos meses. Com sorte, no máximo em dois anos. Uma dessas doenças, cujo nome ninguém gosta de dizer, me achou. Se é inevitável, qual o sentido em ter medo? 

 

A informação o pega de surpresa. Não sabendo muito o que dizer ou como se portar agora, o designer acaba por soltar a primeira coisa que lhe vem à cabeça: 

 

- Oh, sinto muito. É por isso que vem tanto ao médico? 

 

- Ao Doutor Jorge? Sim. Quero estar de pé, por mim mesma, até o último instante possível.

 

Ainda atordoado com o tom tão suave para a fala de um assunto tão difícil, Elmo tropeça de novo na conversa, dando voz ao que deveria ser só um pensamento: 

 

- A senhora me desculpe a pergunta... Mas planeja fazer alguma coisa especial nesse tempo que lhe resta? Porque achei a senhora uma pessoa com muita coragem e isso poderia ser benéfico a muitos! - Fala Elmo, impulsivo e pouco hábil. 

 

- "Nesse tempo que me resta"... hehehe... gostei da fala direta! 

 

O sr. Piazza sente um ligeiro rubor. Nem sabe de onde veio aquela pergunta tão estapafúrdia. Já está pronto a se penitenciar, quando é interrompido por ela. 

 

-  Não tenho mais nenhum plano, não. Nem me sinto no direito de liderar alguém. Acho especial o suficiente viver cada dia. Ir a um cinema. Ver belos jardins. Ouvir risos de crianças. Latidos, miados. O som das águas. Cheirar perfumes. Tomar muitos cafés. E dar risadas.

 

 O designer chega a sentir os olhos úmidos ao ouvir aquela mulher.  E ela prossegue: 

 

- A vida sempre vale, mesmo com seus problemas, com nossos erros. Nossos muitos erros. Aliás, se eu fosse personagem de um filme, e me coubesse uma daquelas falas imortais, com música do Vangelis ao fundo, eu diria: ao final, é mais difícil ter de levar no coração as coisas que deixamos de tentar, e não as que fizemos e deram errado.

 

O homem sente o peito estremecer diante da fala de Helena.

 

- Mágoas infligidas ou sofridas viram quase nada, diante de palavras não ditas e buscas não tentadas. Um copo vazio é bem pior do que um copo com a bebida que não pedimos.  

 

Elmo escuta aquelas palavras e viaja para um labirinto profundo: o seu. A anciã completa, com um riso em forma de charada. 

 

- Ah! Quer saber? Esquece essa frase do copo! Sempre quis dizê-la, mas acho que soou bem boba. Agora, se me permite, vou lhe dar um conselho: saia com ela. 

 

Elmo ruboriza por completo. 

 

- Do que a senhora está falando? 

 

- Não se faça de bobo. Eu percebi a troca de olhares!  

 

Percebendo não haver como desconversar, ele aproveita para largar uma frase arquivada no peito. 

 

- Tem certeza? Pois eu não estou confiante nessa "troca" toda, não. 

 

- Ah... homens! Sempre perdendo detalhes. Não está olhando para a cena toda. Mas eu, sim. - Sorri, enigmática, deixando-o cheio de dúvidas. 

 

A idosa faz menção de se despedir. Então, o sr. Piazza entrega seu cartão, caso ela queira fazer contato, ou precise de algo. Na sequência, vê Mestre Wei sair conversando com os dois tagarelas, que fazem muitas perguntas sobre sua academia, no mesmo estilo barulhento demonstrado no episódio. 

 

Depois, sua musa se aproxima e lhe estende a mão, cumprimentando-o com palavras, num arrastado portunhol: 

 

Agiu bem no ascensor... hã... elevador. Foi corajoso hablar de sus problemas. Parabéns! E obrigada. Entendi que tentou nos ajudar. E ajudou: acalmou, mesmo, mi hijastra... hã... mia enteada...? 

 

Ele preferiria não ter entendido a frase final. Mas disfarça o baque e a auxilia: 

 

- Sua enteada... sim... correto. No caso, você diria "minha enteada". 

 

"Minha enteada". Certo. Hace una semana que chegou no Brasil. E...  também tem fobias. Obrigada. Toma mi tarjeta de visita. Se precisar, para contacto. Trabajo no... 

 

- Décimo-oitavo. Eu sei. Eis aqui meu cartão também. - Responde, com disfarçada fleuma. 

 

Clara sorri, despede-se e caminha para o hall, onde outra mulher a aguarda. As duas trocam um afetuoso abraço e caminham para o estacionamento lateral.  

 

Laura insinua seguir na mesma direção, mas volta-se para Elmo, caminha até ele, sorri e o cumprimenta. 

 

Tens um llapis? 

 

- O quê? Um lápis...? Tenho uma caneta. Serve? - Reage o designer, mostrando o objeto. 

 

Ah... sí... 

 

A mulher tira um bloquinho de sua bolsa, arranca uma folha e, conferindo telas no celular, escreve algumas coisas no papel. Então dobra o bilhete e o entrega a ele, junto com a caneta. 

 

- Desculpa... português ruim, ainda... mas vai melhorar. Lê meu bilhete depois, está bom? Agora, não. 

 

Ruborizada, sorri e vai também para o estacionamento. 

 

Por fim, Tobias passa, meio acabrunhado. O sr. Piazza, então, toma a iniciativa de se aproximar e estender-lhe a mão. 

- Está melhor? 

 

- Acho que sim. 

 

- Tome meu cartão, se precisar. Sou Elmo Piazza, designer. Trabalho no 25º. 

 

O homem responde, entregando também suas credenciais: 

 

- Prazer. Tobias Schroeder. Tenho uma agência de viagens no 21º. 

 

"Então, não é Braga; o crachá não é dele." Eis o que pensa. 

 

- Eu... hã... você mencionou ter um terapeuta. - Fala o sr. Schroeder, meio sem jeito. 

 

- Ah, sim... Suzana Pereira. Gosto muito do trabalho dela. Tenho um cartão com os contatos, aqui. 

 

O agente de viagens Tobias Schroeder, não mais um "Talvez Braga", franze a testa e trinca os dentes antes de responder. 

 

- Olha... não sei se estou pronto para lidar com isso. Nem se me sinto à vontade com um tipo de ajuda na qual não fui ensinado a confiar. Mas... aceito o cartão, sim. 

 

Entregando a referência, Elmo Piazza estuda bem as palavras para fazer um último comentário, antes de se despedir: 

 

- Vou dizer como foi comigo, pois cada um tem seu próprio jeito: para mim, o importante foi primeiro confiar na minha vontade de superar o que me incomodava. Depois disso, ficou mais fácil aceitar confiar em ajuda profissional. 

 

Tobias sai pensativo. E Elmo ruma para seu carro, imaginando como poderia fazer para retribuir Dona Helena. Sempre pensa em viagens de trem. Talvez pudesse convidá-la para uma. Quem sabe, a da Serra do Mar.  Chega mesmo a cogitar se a "Agência Schroeder de Viagens" poderia participar de alguma forma, decidido que está a se desarmar quanto ao "esquisitão do 21º"; bem como achar um jeito de encantar a simpática senhora, tanto quanto ela o encantou naquele episódio inesperado. 

 

Já dentro de seu Creta, volta a atenção para o bilhete recebido. E é quando entende o que Laura conferia no celular enquanto o escrevia: por certo, estava usando o Google-tradutor. No papel, há um número de telefone e uma mensagem que, mesmo curta e pouco harmônica, deixa-o surpreso: "GOSTEI. VOCÊ PARECE HOMEM BOM. TOMA CAFÉ? TELEFONA. LAURA"

 

Mesmo sem saber ainda o que pensar e sentir com essa novidade, Elmo Piazza liga o motor. E segue para casa, enquanto pensa na conversa com Helena. "Não olhou pra cena inteira", ela disse. Talvez ela estivesse certa. Talvez ele precise olhar melhor para seus dias. Perceber que, em algum ponto, não são tão repetitivos. Ou não precisariam ser, ao menos. 

 

Liga o rádio. E a estação sintonizada o ajuda a mudar a trilha sonora do seu dia. Uma quase esquecida canção de Belchior está tocando, "E que tudo mais vá para o céu". Elmo Piazza não resiste e entrega sua voz à letra da velha toada, enquanto vai para casa, levando no peito duas mensagens: a de Helena e a de Laura. 

 

"E eu fui embora sorrindo

Sem ligar pra nada

Como vou ligar

Para essas coisas

Quando eu tenho a alma apaixonada?

(...)

E eu quero é mandar para o alto

O que eles pensam em mandar para o beleléu

E que tudo o mais vá para o céu!"

 

 

 

Sandro Sedrez dos Reis
Enviado por Sandro Sedrez dos Reis em 01/08/2023
Alterado em 03/10/2023
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