Quebra-cabeças
Sábado, em algum outono do século XXI.
Aurora contempla o domínio do verde em seu bairro, algo raro para grandes centros urbanos. E se pergunta se é por isso que o chamam de Boa Vista.
Da sacada de seu esconderijo, no décimo-quinto andar de um prédio residencial, ela sorve uma bebida quente, feita à base de capuccino e café solúveis, diluídos em quantidades desproporcionais numa caneca de leite, enquanto dá espaço na mente para uma assembléia de ideias e imagens.
A salada russa servida aos seus pensamentos contém cenas de sua vida, planos para o futuro, sonhos perdidos, paixões inconclusas e amores vividos. Isso na parte que consegue nominar. Pois parece haver outros temperos no prato, desconhecidos. Copos sedentos que não aceitam qualquer bebida.
Há também sentimentos fortes, que vez ou outra vêm à tona, parecendo palavras de ordem, camuflando-se em sons desconexos.
Na manhã deste abril de céu cinzento, indeciso, o termo que esconde o turbilhão incógnito da refeição mental é cansaço.
Aurora viu muitos lugares, conheceu muita gente. Sentiu uma diversidade razoável de corpos junto ao seu. Fez grandes e bem avaliados projetos arquitetônicos para esta e para muitas outras cidades, embora sempre com a intrigante mania de não lhes dar nomes. Reuniu conforto suficiente à sua volta para seguir nas próximas décadas.
A arquiteta pode ser definida, em termos objetivos, como um elemento que pertence ao conjunto dos bem-sucedidos.
Mas o ser humano não garante frequentar o mundo da racionalidade nem durante todo o expediente comercial. Que dizer então de uma vida inteira?
Nos quarenta e dois anos já saboreados, a pálida e longilínea mulher tem se alternado entre a racionalidade e o desconhecido, o êxito claro e a aflição misteriosa. Olhar para o céu cinza, que se deita sobre o verdejante bairro, espelha bem seu interior.
Não é depressão ou coração partido. Aurora tem certeza. Nem mesmo de longe percebe tal agudez. Afinal, seu sorriso flui fácil e com leveza, compondo belo quadro com seus olhos castanho-esverdeados.
Ela sente muitas cores boas dentro de si. Mas também não consegue batizar como felicidade o sol em seu peito. Pois o teto do coração foi infiltrado, e goteja lágrimas sem nome com frequência. Se bem que, quando há nome, o sol fica ainda menor.
Certa vez lhe ocorreram estranhos tremores, ao olhar de sua sacada para baixo e se sentir caindo. Foi quando ouviu uma voz infantil lhe chamando. Preferiu registrar pra si mesma como vertigem. Afastou aquela primeira impressão de que fosse um impulso mórbido, movido pela curiosidade de um dia vazio.
Mas ela guardou parte da estranha sensação: Tem dias vazios? Ou só incompletos? Talvez sinta, no fundo, que sua vida tem o gosto de um expediente com relógio que não dá dezoito horas.
A sensação, o sentimento, a coisa que ocupa ou esvazia uma parte de si, lembra mais aquele semestre que consumiu montando um quebra-cabeças de cinco mil peças: Um quadro de El Bosco, até hoje inconcluso.
Momentos de alegria e prazer, alternados com aborrecimentos, raiva e ímpetos de selvageria. Orgulho pela capacidade de identificar encaixes e avançar na deslumbrante imagem. Arrependimento por ter se sentido mais uma que comprou essa armadilha para turistas, ao visitar o Museu do Prado. Fascínio pelo desafio da montagem.
Ao longo de toda a construção, sempre a insólita desconfiança de que algum pedaço faltaria. Que seu esforço seria brindado, ao final, com a zombaria do destino.
A ideia de concluir e emoldurar o quebra-cabeças jamais foi abominada. O sentimento de que ao final estaria incompleto, sim. E de forma aguda. Talvez por isso as quinhentas peças restantes permaneçam na caixa.
- "Jardim das Delícias Terrenas", né? Hah! - Murmura para si mesma.
Por vezes, pensa em mudar de rumo. De país. De nome. De mundo. Nunca com suficiente força ou persistência. Até porque não sente, no fundo, que seja este o problema.
Como se resolve essa inquietação? Ela não sabe. A depender do dia, nem pensa nisso e segue adiante. Mas sabe que, em algumas ocasiões, está acorrentada a esse pesar. É quando o "seguir adiante" fica igual a correr atrás do próprio rabo.
Suas incomodações, contudo, acabam de perder a prioridade: a campainha toca.
- Alguém aqui? - Murmura pra si mesmo a arquiteta, estranhando o fato de não ter sido avisada pela portaria.
Enquanto se dirige até a entrada da sala, considera mais duas hipóteses: Ernesto, o vizinho do apartamento em frente, com quem conversa às vezes; ou Dalton, seu último romance que durou o suficiente para obter intimidade com os porteiros.
Ernesto não costuma estar no prédio a essa hora; trabalha no Tarumã, inclusive aos sábados. Dalton não tocaria a campainha, pois tem cópias das chaves. E ainda funcionariam, já que ela não trocou a fechadura. Outra conclusão pendente.
Intrigada e cautelosa, ela se aproxima da porta e pergunta:
- Quem é?
O silêncio tem som de hesitação. Então, ouve-se uma respiração que indica cansaço.
- Por favor, senhora, me ajuda. Meu nome é Jerônimo. - Anuncia a voz que aparenta mais de sessenta anos.
- Mas o que está acontecendo, Senhor Jerônimo? Você mora neste prédio?
Novo silêncio.
- Senhora, por favor, me ajuda. Preciso ver uma coisa na sacada. - É tudo o que o estranho diz.
Ainda com algum receio, Aurora usa o olho mágico da porta. Do outro lado está um homem de pele mais castigada que a sua; e cabelos grisalhos, desalinhados. Os traços são europeus. Seu olhar é enigmático, mas ao mesmo tempo familiar.
Algo a faz acreditar que deve abrir a porta. O homem entra.
A arquiteta se mostra gentil, embora continue achando o pedido ilógico.
- Está bem, Senhor Jerônimo. A sacada fica ali. A propósito, meu nome é....
- ...Aurora. Eu sei. - Completa o senhor, sereno.
Surpresa, a dona do apartamento fica sem ação por breves segundos.
- Desculpa. Eu te conheço, Senhor Jerônimo?
- Não, Senhora Pyziak. Ainda não. - Responde o ser misterioso, enquanto observa a tela de proteção.
- Ele sabe meu sobrenome? - Pensa Aurora, ainda mais intrigada.
- A senhora tem crianças ou gatos? Essas telas são pra isso, né? Pra que não caiam.
A naturalidade com que o visitante fala desarma um pouco a anfitriã.
- Na verdade, é por conta de um sobrinho que vem aqui às vezes. - Responde, escondendo que a rede é também por causa dela.
- Entendi. Bom, então não será tão problemático se eu soltar uma parte por alguns momentos. - Fala Jerônimo, sorrindo.
Essa frase assusta Aurora.
- Soltar as telas? Por que, Senhor Jerônimo?
Aurora sua. Pois antevê a resposta.
- Com as telas, não consigo pular, né, Senhora Pyziak?
Ao ouvir uma ideia tão trágica, falada com tanta serenidade e ironia, a arquiteta irrompe, nervosa:
- Isso é alguma brincadeira? Eu nem te conheço! Você entra aqui e pede minha ajuda. Sabe o meu nome. E diz que vai se matar no meu apartamento?
Jerônimo a corrige, demonstrando compaixão e serenidade no rosto:
- Não no apartamento. Lá embaixo, quando eu me estatelar no chão. Ninguém morre assim que pula. Só depois. Não sabias? Só vim pedir a sacada emprestada um minutinho.
As feições da Senhora Pyziak adquirem o tom das maçãs.
- Meu Deus! Isso é alguma pegadinha? Ninguém fala assim tranquilo que vai se matar!
- Como sabes? Já conversaste com outros que iriam fazer isso? Dizer que ouviu falar ou leu a respeito, não vale...
Instintivamente, ela se aproxima de Jerônimo e muda sua abordagem.
- Espera! Vamos conversar um pouco. Não acho que você queira mesmo fazer isso. Só deve estar numa fase ruim. Por favor, me dê uma chance de te mostrar que vale à pena viver.
- A senhora? Tem certeza? Eu acho que não acreditas tanto assim nisso.
A moradora do apartamento se ofende.
- Como assim, Senhor Jerônimo? Desde quando você me conhece pra dizer uma asneira dessas?
O misterioso sexagenário ensaia uma resposta, mas é interrompido por uma ansiosa Aurora:
- Além do mais, é um jeito muito estúpido de se dar fim à vida. Você pode sentir muita dor antes de morrer.
Jerônimo faz um sorriso incentivador. Seus olhos brilham.
- Opa! Agora está usando argumentos e criatividade para tentar me convencer! Melhorou, Dona Aurora! Enfim, uma missão menos previsível!
- Como é? Você está me testando, seu velho louco? Chega! Vou ligar pra portaria pra te botar daqui pra fora! - Explode a mulher, indignada e assustada.
Jerônimo olha para ela, compadecido. E muda o tom da conversa:
- Está bem. Vou tentar ser menos enigmático. Mas não chames ninguém, não. Vão achar que a senhora é maluca.
- Por que, seu safado? Na frente dos outros vai mentir, é?
- Não, Senhora. É que eles não vão conseguir me ver. Muito menos, me ouvir.
A fala causa um arrepio em Aurora. Ela olha para o velho impertinente, boquiaberta:
- O que você quer dizer com isso?
- Pensa um pouco: Eu pareço real? - Provoca o homem, olhando fixo nos olhos da arquiteta.
- Bom... Eu não vejo nada em você que me faça pensar que não é, exceto....
- ...Exceto que não há uma explicação lógica para que eu esteja aqui, na tua sala, há? - Provoca o pretenso suicida.
A arquiteta não tem como discordar do que acaba de ouvir. É improvável e sem fundamento a presença de alguém como Jerônimo em sua casa. O problema é que ela não deseja cogitar outras alternativas. Pois todas as que lhe ocorrem são aterradoras.
Ter enlouquecido ou estar dopada são as mais desagradáveis. Mas ela duvida de ambas. As conversas com o sujeito estão palpáveis e comuns. E as cores do ambiente, também.
Estar sonhando? É óbvia demais. E seus sonhos sempre tem problemas com o tamanho das coisas no cenário, o que não está ocorrendo.
Mensagem extraterrestre? Não dá pra descartar. Mas acredita que haveria mais glamour, mais tecnologia. E duvida muito que as primeiras conversas fossem na mesma língua.
Só resta, até onde imagina, uma outra resposta.
- O senhor é um... fantasma?
- Gosto mais da palavra espírito. - Murmura.
- Mas isso é surreal! Por que você está aqui? - Pergunta Aurora, quase histérica.
O visitante dá de ombros:
- Tudo o que eu sei é que fui empurrado pra cá. E que devo pular dessa sacada. E repetir isso. E de novo. E de novo...
A Sra. Pyziak experimenta uma tempestade interna. Deveria estar apenas em pânico. Mas há muito mais lá dentro. Inclusive uma força que desconhecia possuir. E ao invés de sair correndo, decide conversar com a aparição:
- Mas deve haver algo que possa ser feito para te tirar disso.
- Sim, claro. Geralmente há. E costuma depender de quem é visitado. - Responde o suposto espírito.
A moradora do décimo-quinto andar escuta o comentário sem se espantar muito. De alguma forma, após ler livros e ver filmes sobre assombrações, já presume que a aparição não escolheu seu apartamento apenas por desejar platéia. Há alguma conexão.
Mas só nesse aspecto não está inquieta. Porque, de resto, não faz a menor ideia da razão que pode ligá-la a esse sujeito que, a julgar pelo tipo e pela modo de conversar, nem é da região.
Pensando bem, agora que sabe que está conversando com uma alma, conclui que provavelmente, também deve ser de outra época.
- O senhor é da Idade Média?
- Eu não entendi a pergunta. - Fala Jerônimo, acanhado.
- Ora, você sabe. As divisões da História em Eras: Idade Antiga; Idade Média; Idade Moderna; Idade Contemporânea...
A tentativa de Aurora em ser didática não o conforta.
- Ah! Aquela conversa outra vez! Todos que eu tenho que visitar insistem nisso! Idade Média, Renascença, Século XV...
O visitante bufa e fala de novo:
- Senhora, eu não fui professor, nem historiador. Não tenho a mais brilhante das memórias. Nem sei exatamente em que época estou a cada missão. Então não vou conseguir satisfazer tua curiosidade. Mas posso te dizer que sou de séculos atrás. Porque isso eu já consegui entender.
A arquiteta presta atenção na fala mirabolante, agora bem menos chocada.
O homem misterioso prossegue:
- Não deveríamos falar um pouco mais sobre você? Acredito que isso explicará mais a minha presença do que descobrir a minha idade.
- Bom, mas, o que eu devo falar? Nunca tive um contato como esse antes. O senhor, pelo visto, sim. Poderia me ajudar com alguma dica. Né? - Reage a moradora, com uma surpreendente tranquilidade.
O visitante coça o queixo e faz menção de se sentar no sofá, o que é correspondido por um sorriso da anfitriã involuntária que, por sua vez, também acomoda-se junto à uma poltrona. E escolhe a mais próxima da porta da sacada, sua favorita para leituras. Além disso, pode ficar mais fácil de segurar o velho, caso ele decida fazer o que anunciou.
A conversa prossegue.
- Senhora Pyziak, pelo pouco que vi até agora, concluo que é pessoa muito instruída e viajada. Então já deve ter tido contato com histórias de espíritos. O que mais se costuma dizer para explicar a presença deles por aí, entre pessoas vivas?
Aurora move os olhos para o nada, buscando um raciocínio rápido enquanto acessa suas memórias.
- Quase todas as vezes em que vi filmes ou li histórias de fantasmas, a presença deles se dava por questões inacabadas; pendências.
O senhor ectoplasmático sorri com seus dentes íntegros, porém amarelados.
- Também ouvi isso ao longo do tempo. Mas do lado de cá há uma outra versão para este assunto. Parecida, mas que diz respeito a vocês, que ainda estão no mundo dos vivos.
A arquiteta o observa com profunda curiosidade. Jerônimo prossegue:
- A de que também somos impelidos a encontrar pessoas que possuem pendências. E de que podemos partir quando a pendência estiver resolvida.
Mais reflexiva do que inquieta, Aurora começa a compreender que o convívio bizarro tem chances de se alongar. Então, decide tornar a passagem do tempo mais agradável.
- Vou fazer uma bebida quente. O senhor aceita?
Ele a olha intrigado. A moradora, súbito, fica sem graça.
- Oh, meu Deus! Desculpa! Que grosseria, a minha! Vocês não conseguem beber, não é?
- Quem disse?
A reação do homem a intriga.
- Ué! O senhor consegue? Mas como um fantasma faz pra...
- ...Pra que o líquido não atravesse seu corpo? - Jerônimo complementa, irônico.
A dona da casa esboça um meio sorriso; tímido, concordante, mas constrangido.
- Como tudo o mais: é só treinar. Levei um bom tempo. Mas já posso dizer que aceito seu chá; ou seja lá o que for. - Explica o misterioso senhor.
Ainda perplexa, a descendente de eslavos vai até a cozinha. Enquanto aquece a água, direciona sua inquietação para as cordas vocais.
- Então... Já precisou visitar muitas pessoas como....hã... espírito?
O Sr. Aparição baixa um pouco o rosto e as pálpebras, olhando para si mesmo.
- Mais do que eu pensei que aguentaria.
Aurora percebe que sua pergunta causa dor. Muda de assunto com facilidade:
- Camomila, preto, hortelã, frutas vermelhas, erva-doce, carqueja... Qual você prefere?
- Como é? - Pergunta Jerônimo, saindo do pesar.
- O sabor do chá. Também tenho café e capuccino. - Esclarece a moradora.
- Ah. Frutas Vermelhas.
A tranquilidade volta ao rosto do espírito visitante.
- Não imaginei que justo esse fosse o seu preferido. - Admira-se a moradora.
Jerônimo sorri e comenta:
- Na verdade, é o único da lista que nunca provei.
Aurora traz duas xícaras para a sala. Entrega a de chá ao visitante.
- Bom. Falávamos de pendências. Não é?
- Precisamente, Senhora Pyziak. Tem ideia de quais a acorrentam?
A mulher se reabastece com sua mistura favorita, enquanto pensa. Ela não tem certeza do que possa ser a sua grande pendência. O seu penar. Sabe que tem inquietações, mas nunca se esforçou o suficiente para classificá-las.
- Olha, eu não sei dizer se tenho algo tão pesado assim. Terei que pensar muito, senhor Jerônimo.
- Pensa à vontade. - Ele comenta.
- Mas e se demorar pra eu concluir? - Ela testa.
- O tempo não é mais um problema pra mim. É apenas pra ti.
- E a história da sacada? Tem mesmo que pular várias vezes?
- Só enquanto estivermos presos um ao outro. - Responde o fantasma, quase com ironia.
A mulher não deseja se habituar a ver essa cena. Uma queda sem fim. Um ato que não se conclui. Isso a incomoda muito. Porque é trágico. Mas também porque não acaba.
Enquanto ela pensa tudo isso, Jerônimo prova a bebida, faz cara feia, levanta-se e caminha para a sacada.
- Foi instrutivo conhecer este chá. Obrigado. Agora preciso fazer o que esperam que eu faça.
Aurora intervém, aproximando-se dele:
- Espera! Eu estou pensando!
- Eu sei. Mas disse que demoraria. - Retruca o velho, enquanto põe as mãos na tela de proteção, procurando afrouxá-la.
Aurora sente a pulsação aumentar. Ela não quer ver a cena. Mas ao mesmo tempo, não sabe o que deve falar. Ou não tem coragem.
A respiração fica ruidosa. A xícara é largada. A dona da casa se ergue.
Jerônimo termina de afrouxar a tela. Mas uma voz ansiosa e meio aguda interrompe seu próximo movimento.
- Eu não consigo fechar as histórias!
O tiozão fantasmagórico para de mexer na tela. Vira-se para trás e fita a anfitriã. Sorri discretamente e a encoraja:
- Você tem a minha atenção!
A Senhora Pyziak fica procurando palavras. Sempre lhe faltam, quando o assunto é ela mesma. Mas sabe que terá que dizer algo.
- Desde muito tempo, percebo que faço boas coisas e que tenho alguma clareza do que quero fazer. Mas sempre que preciso concluir...
- Vais querer dizer que não completas teus trabalhos? Tens certeza? Porque não parece ser o caso. - Intervém Jerônimo.
- Acho que você tem razão. - Responde, pensativa.
A profissional bem sucedida olha para baixo. Ou para dentro de si. E fala:
- Eu não encerro as histórias em mim. Não as deixo ir.
Jerônimo senta novamente. E olha para a mulher parecendo concordar.
- Dificuldade em aceitar que um capítulo se encerra pra começar outro? Que os filhos precisam ir embora um dia?
Ela retruca, com a voz baixa e funda:
- E eu nem tenho filhos...
- Que solução inteligente e original! - Ironiza o fantasma.
- Se essa é a pendência que devo resolver, como eu saio disso? - Pergunta Aurora, com uma honestidade além do seu normal.
- Com simplicidade. Começa pelo mais próximo e palpável. Olha pra dentro de ti. O que aparece quando tens que deixar alguma coisa que é tua?
Há um silêncio enquanto a arquiteta pensa. Várias imagens de projetos, brinquedos, pessoas, jogos e construções desfilam para seus olhos. Ela também revê uma cena de velório.
- Vi muitas imagens de coisas que perdi, ou que tinham mesmo que ir. Veio também a imagem de um enterro, ocorrido há muito tempo. Pra tudo, o coração aperta.
Jerônimo ouve em silêncio e com toda a atenção. Mas nada comenta.
- Tá... Não vai falar nada? - Pergunta a mulher, perplexa.
- Não prometi falar.
A arquiteta põe as mãos na cintura e faz um olhar de reprovação. O velho se defende:
- Ei! Não sou um mago! Estou tentando ter ideias. Mas não quer dizer que já sei a resposta.
Enquanto a anfitriã forçada tenta compreender as palavras, o visitante continua:
- Sou mais de ação do que de palavras. Então, ainda tens alguma dessas coisas que viste? Algo que possamos tocar, manipular...
A curitibana segue perplexa. Não bastasse toda a insolitude da situação, sua companhia ainda fala por rodeios. Ou, ao menos, é o que ela acha.
- Como assim, senhor Jerônimo? Um objeto desses que eu vi? A foto de algum ex?
Dando de ombros, o homem resmunga:
- Se é só isso que tens...
- Mas qual é a ideia? - Pergunta a senhora Pyziak, curiosa e impaciente.
- Pensei em olharmos para eles, pra entender como e porque te prendem. Ou porque parecem não terminar. - Explica o fantasma.
- Eu tenho algo de fato não terminado que dá pra ver e tocar. Um quebra-cabeças. - Retruca a arquiteta, pensativa.
Jerônimo fica meio confuso com o termo. Não se habituou a usá-lo em sua vida. A mulher percebe.
- Vou buscá-lo. - Diz, ao levantar-se e ir até o quarto.
Ela vasculha seu maleiro por alguns minutos. Até que encontra uma caixa branca, com inscrições e uma ilustração na tampa; além de uma pasta especial para projetos. Em seguida, leva seus achados para a sala.
Ao abrir a pasta, retira um quebra-cabeça semi-montado, colado em placa especial. Da caixa, um saco que contém peças para engatar e completar a ilustração.
Os olhos da aparição brilham muito ao ver a imagem que se espera concluir e mostrar. Ele dá um grande sorriso. Então ergue os olhos e balbucia:
- Mas é... É... O Jardim!!!!
Atônita, Aurora comenta:
- Na verdade, o nome é "O Jardim das Delícias Terrenas" . É um quadro famoso do pintor El Bosco.
- Bosch. - murmura o espírito.
- Sim. É a mesma pessoa. Os espanhóis o chamavam assim. - Retruca a mulher, com naturalidade.
- Verdade? Que elegante da parte deles! - Reage o homem, fazendo ar infantil.
A mulher sorri do comentário, que considera ingênuo. O que reforça sua ideia de que o homem veio de época bem diferente e de cidade bem distante e interiorana.
Os pensamentos da paranaense são interrompidos. Jerônimo espalha as peças não coladas, virando-as com a face para cima, na mesinha de sala. E traz a objetividade de volta:
- E qual é a dificuldade em terminar a montagem?
- Eu comecei a cismar que faltava alguma peça. Fui acreditando que me aborreceria se continuasse encaixando e colando e, no final, ficasse com um quadro imperfeito. E isso me paralisou. Parece bobo, falando assim. Né? - Expõe, bem encabulada, a senhora Pyziak.
Sem maiores cerimônias, o velho ectoplasmático dispara:
- É meio bobo mesmo. Mas é o que tem te pesado.
Mais uma vez, a paranaense fica perplexa com a falta de meias palavras do visitante. Porém, não se ofende mais. Decide, contudo, não dar o braço a torcer. Nada responde.
No silêncio, Jerônimo prossegue:
- Todo quadro é imperfeito. É o resultado de inquietações, de sonhos, de inspirações humanas. Não é a falta de um detalhe que definirá isso. Teu medo não é pela imperfeição, é? Na verdade, o que fica pronto, concluído, parece te dizer que não precisa mais de ti. Isso, sim, te assusta.
Aurora sente um arrepio na alma ao ouvir essas palavras. O velho faz um sorriso manso e pergunta:
- Quantas vezes você já decidiu que não precisa mais de alguma coisa? Que ela pode e deve partir?
Ela se embaraça. Seu primeiro impulso é dizer que nunca pensou nisso. Mas sabe que não é verdade. No fundo, evita lidar com essa questão. Desde sempre.
- É uma pergunta retórica. Para refletir. Não precisa responder. - De novo, é o visitante falando.
A moradora do apartamento não está mais acostumada a um papel tão longo de ouvinte. Assim, decide tomar a palavra. às pressas. E o que é dito sai meio sem querer:
- Minha irmã gêmea.
- Como é? Você tem uma irmã gêmea?
- Eu tinha, senhor Jerônimo. Aurélia viveu poucos anos. Uma disfunção cardíaca a levou bem quando iríamos entrar na escola. - Fala a arquiteta, em tom baixo e meio embargado.
- Você tem uma irmã gêmea. - Rebate o fantasma.
- Tenho? Ah, sei. Entendi. Vamos ter uma conversa espírita, agora? Vai me dizer que ela está aqui, me olhando? E, daqui a pouco, haverá uma moedinha flutuando no ar? - Reage a mulher, falsificando sarcasmo.
- Até poderia. Mas não é o caso. Não faço ideia de onde tua irmã está. Mas ela partiu. Não é culpa dela, nem tua.
A palavra-chave faz brotar algumas lágrimas na mulher.
- Senhora Pyziak, é certo que dói muito perder uma irmã, companheira de infância. Mais ainda se é gêmea.
As águas seguem vertendo dos olhos da mulher.
- Mas receio que a dor que te paralisa é a de ter se sentido abandonada por alguém tão ligada a ti. De culpá-la por ter seguido sem te levar junto. E de se culpar por ter dado a ela essa culpa.
Enxugando o rosto, a anfitriã reage:
- E como você entende assim tão bem desse tipo de perda e culpa? De tanto visitar os vivos com problemas? Ou fazem algum curso no lado de lá?
Jerônimo olha para o nada. Seus olhos derramam tristeza. Distante, mas que ainda arranha. O reflexo que brota de cada íris lembra o de chamas.
- Não foi necessário. Perdi muitos conhecidos na infância. E de uma só vez. Foi num incêndio.Também senti coisas estranhas por causa disso. Coisas que me fizeram ter raiva e culpa, esmagando meu sono por muito tempo.
A arquiteta se dá conta que aquele fantasma também sente dor, e que a vida dele não foi tão fácil. Cada frase proferida traz o som de lágrimas e soluços, mesmo que os olhos sigam secos.
- Senhor Jerônimo, eu... sinto muito. Não quis fazer pouco de sua vida. É que nunca tinha falado com alguém sobre a morte de minha irmã.
A expressão do homem muda de novo. A serenidade volta ao seu rosto. E a voz ouvida é, de novo, a sua:
- Relaxa. Só estavas defendendo tua dor, para deixá-la escondidinha lá dentro. Fiz muito isso, também. Passei por coisas difíceis. Até maledicências. Não o tempo todo; só o suficiente pra querer esconder bem essa ferida. Mas o melhor é fazê-la sair. Pra ir embora.
- E foi fácil pra você fazer isso? - Ela pergunta, sincera.
- Não acho que seja bom classificar como fácil ou difícil. Eu fiz. E esse é o ponto. - Pondera o homem do passado.
- Como?
- Trabalhei com arte. Ilustrações. Gravuras. E sempre as tratei pensando que um dia não seriam mais minhas. Mesmo que uma parte de mim continuasse nelas.
- Está sugerindo que eu pinte? - Indaga, surpresa.
- Estou sugerindo que, o que quer que faças, lembra que um dia acabará. E que isso pode significar que irá pra longe de ti. Como teus projetos, que deveriam ter nomes, assinaturas. Nomes dados são como filhos. E até eles tem começo, meio e fim. Tudo tem.
A descendente de eslavos o escuta, concentrada e mexida. O visitante percebe. E convida:
- Mas não fiquemos só no parlatório. Vamos trabalhar um pouco.
Apontando para a mesinha cheia de peças, senta no tapete, para faciitar o manuseio.
Aurora sorri e faz o mesmo. Esfrega as mãos como uma criança que inicia um jogo que aprecia muito.
- A sensação de que vai faltar peça continua, mas vamos lá! - Diz a mulher, sorrindo.
- Não falta nenhuma peça. Os pedaços que estão aí completam o desenho da primeira parte do tríptico. Observei cada item solto e vi seu lugar no quadro. Eles são suficientes. Fecharão a gravura. - Assegura o fantasma.
- Como tem essa certeza?
- Conheço bem essa pintura. - Responde Jerônimo, enquanto olha com emoção para o quebra-cabeças.
- Ah! O senhor já a montou alguma vez?
A pergunta da arquiteta arranca um sorriso de orgulho no homem, que responde, franzindo as sobrancelhas:
- Algumas...
E, apontando para as peças, descreve:
- Este é um pedaço do Paraíso, onde aparecem animais como o elefante e a girafa. Esta forma pontiaguda é a torre que se inicia no lago, próximo ao Criador. Acredito que as peças deverão ir na sequência distribuída na mesa, da esquerda para a direita.
- Nossa! Estou impressionada!
Aurora se encanta com a habilidade de Jerônimo e com a evolução do quadro. Enquanto conversam sobre a obra, as peças vão se encaixando e sendo coladas.
O fantasma ainda diz para a mulher que acha curioso o fato de que a parte do quadro que retrata a imagem mais harmoniosa é a que está pendente. Enquanto as que representam a terra e o infermo, com seus conflitos, desejos, e tormentos, estão completas e impecáveis. Se é só coincidência ou não, cabe a ela pensar.
Até o fim da tarde, o Jardim das Delícias Terrenas está concluído. A imagem plena do tríptico clássico sobre a mesa faz ambos sorrirem.
- Obrigada! É realmente uma obra única. Vale à pena a trabalheira!
- Quem agradece sou eu, minha senhora. Foi muito bom mexer nessa imagem novamente. - A resposta vem repleta de dentes na face do fantasma. Amarelos, mas alegres.
- Sempre gostei desse quadro. Já li tantas interpretações sobre ele. Mas nenhuma dá conta do que eu sinto quando o vejo. - Comenta a curitibana.
- Vi muitos me explicarem que ali está retratada a loucura e o pecado humanos. Pois eu sinto o quadro como sendo a nossa condição na terra, entre conflitos e maravilhas. Entre sagrado e profano. O que é dado, o que é tirado e o que tentamos construir. Ou destruir. - Comenta Jerônimo.
A dona do apartamento olha para o espírito sexagenário, instigada pelos pensamentos. Ele, empolgado, diz ainda:
- Acredito, senhora Pyziak, que essa obra quer ser sentida, mais do que entendida.
Ela presta muita atenção nas palavras. Há coisas a aprender. E Aurora deseja aproveitar esse aprendizado para sua vida.
A curiosidade do fantasma é quem fala:
- A senhora o concluiu. O que vai fazer agora?
- Com o quadro? Acho que vou emoldurá-lo.
- E...?
A mulher não entende a deixa de imediato. Pensa um pouco. Até que responde:
- Vou dá-lo para minha prima Cléo, que é uma amiga muito especial.
- Um começo. - Sorri a aparição.
A arquiteta mostra os belos dentes também, num simpático gesto de concordância.
O homem respira de forma mais ruidosa enquanto se levanta e diz:
- Bom, creio que minha contribuição acaba aqui.
- Vai partir?
- Vou. Foi um prazer conhecê-la e uma honra participar de suas reflexões.
Em seguida, caminha em direção à entrada da sala.
- Ei, senhor Jerônimo. Então não precisará pular de minha sacada nem no momento final? - É o que pergunta Aurora, enquanto o acompanha até a porta.
O espírito vira para ela, sorri e responde:
- Ah, sim. Deixa eu explicar. Com o tempo e as primeiras visitas, percebi que preciso ser dramático na chegada, para obter atenção de verdade. Isso facilita e agiliza o trabalho.
O sorriso do velho ao responder é acompanhado pelo da anfitriã, que protesta com um gracejo:
- Mas que atrevimento para alguém da sua idade!
- O importante é que funcione, né? - Sorri o visitante.
- Devo duvidar dos outros relatos também? - Provoca a paranaense.
- Nada falei que não conhecesse bem. Porém, o assunto aqui sempre foi a senhora. Não eu.
A frase ambígua é tudo o que a agora sorridente mulher obtém de explicação.
- Seja feliz, Aurora Pyziak!! - Despede-se o fantasma, já pisando no corredor.
A arquiteta fecha a porta, ainda atordoada com o dia que teve. Mas algo dentro dela parece trabalhar melhor do que antes.
Está iniciado o entendimento: há várias pequenas coisas que merecem atenção e ação. Um novo ímpeto a invade. E não deseja perder tempo.
Olha para o relógio. Ainda dá para chamar o chaveiro hoje; e trocar o segredo da fechadura. Afinal, terminou com o Dalton há três meses.
Amanhã, irá rever seus projetos de arquitetura. E, para todos em que ainda for possível, registrará nomes.
Falará mais sobre Aurélia com sua família, pra que sua lembrança deixe de ser uma história inconclusa.
Na próxima quarta-feira, levará o quadro já emoldurado para presentear Cléo.
O que ela ainda não sabe é que, quando visitar a prima tagarela e estudiosa, ouvirá uma pequena história:
- Obrigada pelo presente! Adoro esse pintor! Viveu numa cidade pequena e pacata sua vida toda. Sofreu algumas perdas na infância. E lidou com preconceito religioso quando adulto, mesmo tendo sido um cristão fervoroso. Mas essas coisas não sufocaram sua genialidade! Hieronymus Bosch marcou sua passagem pela Terra como poucos!
Curiosa ao ouvir o prenome, Aurora comentará:
- Esse é o nome dele? Que diferente!
Então, a prima sabichona explicará algo que a deixará muito pensativa:
- Nem tanto. Já foi um nome bem comum por aqui. Hieronymus é a latinização de Jeroen, seu verdadeiro nome. Em nossa língua, seria Jerônimo.